2016 foi um velório contínuo. David Bowie deixou-nos três dias depois de profetizar o futuro (outra vez) em “Blackstar”. Prince partiu na tarde de 21 de Abril. Leonard Cohen, tal como Bowie, esvaziou gavetas e “You Want It Darker” viu a luz do dia antes do diálogo com Deus. E George Michael atribuiu um novo sentido ao “Last Christmas”, deixando-nos na manhã de Natal quando as crianças ainda dormem sobre a fantasia do último brinquedo.
Quatro papéis de um filme sempre pop ao qual foram subtraídos outras vozes: o furacão soul Sharon Jones, o símbolo country Merle Haggard, o compositor Leon Ware, o rapper Phife Dawg dos A Tribe Called Quest, o mayor da rua dos funkeiros Earth, Wind & Fire, Maurice White e Glenn Frey dos Eagles deixaram o ano a meia-haste de Janeiro a Dezembro. Tanta gente em tão pouco tempo que começou a correr a teoria do fim da história no retrovisor de 2016.
De facto, Bowie, Prince, Cohen e George Michael eram ícones com uma transversalidade dos 7 aos 77 quase impossível de recapturar na era da dispersão e da multiplicidade de canais mas estarão a estrelas pop a desaparecer ou a mudar de perfil?
Enquanto meio mundo glorificava o passado ignorando que o que fez de Bowie, Prince e, antes, de Michael Jackson símbolos a audácia e a não-resignação perante a memória, Drake batia todos os recordes. A música pop é-o por fazer parte da vida das pessoas. E onde é que elas estão a ouvir música? Nas plataformas de streaming. Em 2016, “Views” foi o álbum mais ouvido no dia de estreia no Spotify, o mais vendido do ano (já incluindo os números obtidos via streaming) acima de “25” de Adele e deu-lhe a canção mais ouvida: “One Dance”, responsável ainda por outro marco. Pela primeira vez, um single foi ouvido mais de mil milhões de vezes no Spotify. Isto apesar de o longa-duração do ano passado ter sido um exclusivo Apple Music durante as duas semanas iniciais de lançamento.
As família já não se sentam à frente de um ecrã como no Séc. XX mas entre as gerações nascentes, nunca a música se ouviu tão alto e longe. E se há alguém que tem usado as plataformas disponíveis para se projectar é Drake.
Na madrugada de sábado para domingo, o adiado desde o ano passado “More Life” viu a luz do dia e a Internet reagiu em peso. De acordo com um responsável do Twitter, gerou 2,5 milhões de publicações nas primeiras 36 horas. Mais do que por exemplo, “Lemonade” de Beyoncé (1,8 milhões) ou “Anti” de Rihanna (675 mil), os dois do ano passado.
Não goza do reconhecimento de Kanye West, não defende causas amistosas ao primeiro mundo como Beyoncé, não é um empresário como Jay Z, não possui o verbo de Kendrick Lamar nem canta como Adele mas foi capaz de criar um produto pop eficaz como Justin Timberlake ou Pharrell Williams e, graças a essa objectividade, fixar fórmulas seguidas pela pop global.
Contemporâneo tal como o ex-cúmplice The Weeknd do álbum “808s & Heartbreaks” de Kanye West – um marco na humanização do rap e na relação entre r&b e sintetizadores – Drake partiu desse ponto para construir um património de pop herdeira da rua com múltiplas associações. Por exemplo, com a batida nigeriana no single “Controlla”, um dos mais populares do ano passado, com a África do Sul em “Get It Together” já de “More Life” e com o “grime”, obsessão repetidamente assumida nas redes sociais, com referências constantes a Skepta, aparições inesperadas em concertos de alguns MCs e a passadeira estendida ao rapper londrino Giggs no novo álbum.
‘More Life’ é interessante porque este é o Drake na berra com o seu maior projecto [“Views”], a fazer a maior digressão de sempre, e mesmo assim cheio de ideias para pôr cá fora sem fazer muito barulho à volta disso”, descreveu o produtor à “Billboard”.
Por contraste com a estratégia de outros cabecilhas, Drake não fez das digressões o fim lucrativo da obra construída em estúdio e, por isso, tem editado ao ritmo regular de um álbum por ano, mesmo quando lhe dá outro nome: “playlist” a “More Life” ou “mixtape” a “If You’re Reading This It’s Too Late”, uma sociedade com o rei do (t)rap Future.
Até nessa preferência, parece estar a mudar as regras do jogo. Ou pelo menos, a criar uma alternativa dentro da nova indústria. Se cada vez que alguém ouve uma música no Spotify 0,005 dólares revertem para o artista, no mínimo “Views” gerou 50 milhões de dólares (mais de 46,5 milhões de euros), refere a “Forbes”. A choruda herança dos 1,15 mil milhões de escutas de “One Dance”, 600 milhões de “Hotline Bling”, 520 milhões de “Too Good” e 340 milhões de “Controlla”. Para se ter uma ideia do quanto a maré está a subir, o single de final de ano “Fake Love” – agora recuperado em “More Life” – já está nos 320 milhões – e sem sinais de abrandamento.
O poder de Drake também se vê na recusa em receber dois Grammy atribuídos a “Hotline Bling” nas categorias de Melhor Canção Rap e Melhor Performance Rap. “A única categoria em que me encaixaram foi o rap, talvez por ter feito algo desse género no passado ou porque sou negro. Não consigo perceber o motivo”, contestou no programa da sua editora OVO, difundido semanalmente na rádio Beats 1 da Apple Music. Este ano, faltou à cerimónia em aparente solidariedade para com a omissão de “Blonde” de Frank Ocean dos nomeados por atraso na entrega da candidatura.
O poder institucional lida mal com ele, os académicos não compreendem as ruas e os europeus não suportam a hegemonia americana; a tudo isto, responde Drake com canções para as pessoas. E estas falam para muita gente.