Há 60 anos um grupo de aventureiros – composto por representantes políticos de França, da República Federal da Alemanha, do Luxemburgo, da Holanda, da Bélgica e de Itália – reuniu-se em Roma, para o pontapé de saída naquele que viria a ser um dos projetos políticos mais ambiciosos da longa existência do Velho Continente, numa altura em que ainda se lambiam as feridas da Segunda Guerra Mundial. Este sábado, ‘os Seis’ reunir-se-ão novamente no Capitólio da capital italiana, acompanhados pelos outros 21 membros do clube europeu, e já sem a presença do primeiro desistente, o Reino Unido, para celebrar o aniversário da assinatura dos três acordos que colocaram na mesa, a primeira peça do enorme puzzle territorial, político, social, securitário e económico, a que hoje damos o nome de União Europeia, conforme a designação adotada em Maastricht, em 1992.
O sexagésimo aniversário da assinatura do(s) Tratado(s) de Roma será, pois, celebrado, com pompa e circunstância – terá até direito a uma ‘Marcha pela Europa’ nas ruas da cidade italiana – mas, como é habitual quando se atingem números gordos e datas especiais, virá agrilhoado à necessidade urgente de uma profunda reflexão sobre o caminho até aqui trilhado e, particularmente, sobre a direção a tomar daqui para a frente.
Alimentada por um mercado interno sem rival à escala global, a UE pugna por ser a arena política mais democrática e avançada do planeta, e chama a si um espaço onde o progresso socioeconómico, a sociedade aberta, a inovação científica e o respeito pelos direitos fundamentais são adotados como imagens de marca.
As provações a que foi sujeita nas últimas duas décadas, no entanto, colocam-na, hoje, numa verdadeira encruzilhada e embora seja um escarrapachado exemplo do tão badalado fenómeno da globalização, é com ele que a Europa parece andar às turras e com o qual questiona a sua própria identidade e existência. A estratégia seguida pela União, enquanto bloco, para enfrentar a crise económico-financeira, o desemprego, o aumento dos fluxos migratórios ou o crescimento da ameaça terrorista, provocou divisões profundas entre os Estados-membros, que passaram a olhar mais para o seu umbigo, e menos para o vizinho do lado. À ‘desordem’ europeia responderam as economias emergentes, impulsionadas pela vertiginosa velocidade da revolução tecnológica e industrial à escala global, com modelos comerciais competitivos e, na sua maioria, asfixiantes sobre o estagnado padrão económico, social e demográfico das democracias europeias, nas quais os governos tradicionais deixaram de conseguir responder de forma eficaz e inclusiva.
A ineficiência trouxe o descontentamento social e a ideia de que a cúpula comunitária se esquece facilmente dos mais de 500 milhões de cidadãos que residem e trabalham no espaço europeu abriu espaço ao populismo eurocético. Sob o seu signo pululam, agora, pela Europa, antigas soluções para novos problemas. Nigel Farage, Marine Le Pen, Geert Wilders ou Viktor Orbán declararam guerra ao establishment europeu e trouxeram para a ribalta a urgência em recuperar o velhinho Estado-Nação ‘vestefaliano’, para recuperar a soberania e a dignidade nacionais, diluídas nos corredores de Bruxelas.
E como é nas urnas que (quase) tudo se joga, o ex-Primeiro-Ministro britânico David Cameron, prometeu um referendo à permanência do Reino Unido na UE, em vésperas da campanha eleitoral de 2015, e o seu resultado, um ano depois, marcou data para a inauguração do ainda pintado de fresco artigo 50º do Tratado de Lisboa, que formaliza o pedido de abandono de um Estado-membro – Theresa May apontou o dia 29 deste mês para o efeito e já nem marcará presença na festa europeia em Roma. Com o Brexit, murmurou-se sobre o Nexit, e chumbado este último, com a aparente derrota de Wilders nas eleições holandesas, fala-se agora no Frexit – em França, pois.
Edificada, na sua origem, para impedir que franceses e alemães se voltassem a atirar uns aos outros, a União volta agora a depender da liderança do eixo franco-alemão para compensar a saída dos britânicos e, por isso, olha com expectativa para as próximas batalhas eleitorais, que põem frente-a-frente o populismo eurocético nacionalista e os partidos moderados, a começar precisamente em França (finais de abril e inícios de maio), onde Le Pen promete virar costas à UE, em caso de vitória, que passará a bola para a Alemanha (setembro).
O futuro em jogo
Um europeísta mais convicto dirá que a comemoração da assinatura dos acordos de 1957, deste sábado, é o pretexto perfeito para uma verdadeira declaração de intenções dos 27 sobre o rumo a seguir, inspirada numa nova manifestação de unidade. O mote, aliás, foi dado pelo próprio Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, quando há umas semanas deu início a um debate aberto sobre o futuro da União Europeia, pouco visto até aqui, ao apresentar um livro branco, de natureza interrogativa, no qual sugeria cinco cenários possíveis para a organização pós-Brexit.
Mas a forma como o documento foi redigido deixa transparecer algum desalento e se dúvidas houvesse sobre tal sensação, Juncker fez questão de as desfazer, quando o apresentou aos eurodeputados, exaltado e desconsolado. «Dizem que não ouvimos as vozes dos eleitores, mas quando o fazemos, somos criticados. Então merda. Eu diria merda, se não estivesse no Parlamento Europeu. O que querem afinal que façamos?», desabafou o líder da Comissão.
A viragem da UE para uma relação de maior proximidade com os seus cidadãos e trabalhadores é um dos pontos que Juncker entende como essenciais para o futuro da Europa. «Tenho procurado voltar a incluir o elemento social no coração da Europa, onde deveria ter permanecido, durante todo este tempo», contou ao Politico, após um encontro onde os líderes europeus debateram o conteúdo da declaração comemorativa conjunta. Uma opinião que é, de resto, partilhada pelo vice-presidente da Comissão. Em declarações ao Guardian, o holandês Frans Timmermans acredita que a União «corre sérios riscos» de se «tornar parte do problema», se não conseguir «interligar-se com as pessoas de uma maneira melhor».
Para além da decisão de reforçar ou não o pilar social, a UE terá ainda de decidir sobre variadíssimos outros temas, aos quais não pode fugir. Como as reformas no âmbito da União Monetária e Económica, o avanço ou o abandono da intenção de integração a diferentes velocidades ou o reforço dos seus mecanismos de segurança. O abandono do Reino Unido e a postura pouco convencida do Presidente dos EUA em relação à atual distribuição orçamental da NATO, obrigam a União a ter de repensar novas formas de investimento em defesa e o seu sexagésimo adversário pode ser o momento certo para o fazer. Que o digam os Estados bálticos, receosos das movimentações russas junto às suas fronteiras.
Desafios não faltam, portanto, à velhinha comunidade europeia e uma nova estratégia para os enfrentar pode muito bem ser concebida novamente a partir de Roma. Pelo menos no papel.