Alberto Barrera Tyszka tem como último livro publicado “Pátria ou Morte”, um romance em que um país suspenso no ódio e no amor por um homem vive o drama e o teatro da sua doença mortal. Estamos a falar de um romance em que a Venezuela atual desfila pelos nossos olhos na pele das várias personagens. Segundo o autor, Hugo Chávez está doente e arrastou consigo a Venezuela para a doença. Alberto Barrera Tyszka é um cidadão com uma firme posição antichavista, mas escreve um romance que consegue, de alguma forma, dar um horizonte social diferente do seu. Por isso, a conversa passou muito pela situação política que se lê para além das personagens.
Há muitas Venezuelas ou só há uma?
Há muitas Venezuelas e algumas delas parecem irreconciliáveis. O processo que vivemos também contribuiu para isso, Hugo Chávez tornou a política uma questão afetiva: converteu-a num problema pessoal de devoções extremas, de ódios, amores e lealdades. Por isso, não se pode analisar ou estar em desacordo calmamente. E isso é um problema, tudo se converteu em conflito. Chávez converteu o populismo numa experiência sentimental.
Os conflitos não eram anteriores a Chávez? A Venezuela tem historicamente uma situação de grande desigualdade em que grande parte da população estava quase fora do espaço político e da visibilidade social. Mesmo no seu livro há uma mulher que narra ter visitado a cidade no passado e que na casa dos patrões nem no mesmo copo de água podiam beber. Apesar da crise atual, não há o aspeto positivo de o chavismo ter incluído essa parte da população no campo da política?
Eu acho que o Chávez foi um sintoma de um país que precisava de mudar. Havia uma grande necessidade de mudança num país que, tal como toda a região latino-americana, tem uma enorme pobreza e desigualdade – uma situação que ficou impune durante anos. Chávez deu voz a toda essa gente. Se calhar, o mais importante que fez são duas ideias fundamentais: uma, colocou no centro do debate político a questão da pobreza; e, duas, deu aos mais humildes consciência da sua importância política na sociedade e do seu protagonista. E isso, que parece simbólico, muda profundamente uma sociedade. Mas isso teve um custo: com Chávez, voltou o militarismo e uma quantidade de coisas. Estes problemas existiam, mas Chávez deu-lhes um outro sentido que, de alguma forma, o dramatizou: disse a essas pessoas “o que tu não tens é porque te tiraram”. Não é possível construir uma democracia assim.
O que, de alguma forma, não é mentira (risos).
Sim, de alguma forma é parte da verdade, se olharmos para os muito ricos, mas a classe média não tirou nada aos pobres. É um discurso simplista. Há privilegiados que se transformaram numa oligarquia, mas esquece que, neste momento, estes privilegiados são os chavistas. Somos um país petrolífero onde todas as relações estão nas proximidades do Estado. Quando alguém fica 17 anos no poder, com a proximidade de empresas tão ricas como as do petróleo, corrompe-se. Meter toda a sociedade nesta dinâmica de oposição funcionou mal, porque o primeiro apoio que perdeu foi o da classe média, uma camada que nem sequer era muito privilegiada, que lhes tinha custado muito conseguir um apartamento e um carro, e se viram sob ataque.
Não estive na Venezuela, mas noutros países onde estive na região há uma fronteira entre os pobres e o resto da população que parece ser quase racista e dividir dois mundos diferentes.
Em todas as sociedades latino-americanas, não sei se nas europeias também, há uma ilusão de harmonia, há a crença de que tudo é harmónico e até as injustiças não tocam nessa relação: podemos ser amos e escravos sem colocar em causa essa ligação afetiva, no Brasil é impressionante essa situação. Isso cria uma situação em que, por exemplo no México, se torna muito difícil reconhecer o racismo: por um lado, há um total desprezo pelas populações indígenas; por outro, há uma mitificação do seu passado asteca. Estas divisões e injustiças existem, o que eu penso é que construir um futuro a partir do exacerbar destas divisões não me parece possível.
Um pensador argentino, Ernesto Laclau, defende que uma rutura populista necessita da construção de um povo e de um terreno político hegemónico, e que isso passa por apontar quem são os inimigos e os amigos. Não é disso que se trata aqui? Não terão colocado a classe média nos inimigos?
Não sei se Chávez o planificou dessa forma. Chávez disse: quem não está comigo está contra mim. E, no final, afirmou que era o povo, que era a representação de todo o povo venezuelano. E isso é um processo complicado que implica a construção de uma determinada dinâmica.
Há um documentário da autoria de uns irlandeses sobre a Venezuela chamado “The Revolution Will Not Be Televised” em que se vê o golpe de Estado contra Chávez. E há uma cena impressionante em que, depois de tomarem o poder, os antichavistas começam a destruir tudo: o mau, o menos mau e o bom. As antigas elites não querem a democracia, mas o revanchismo.
Essa cena que menciona está em todos os documentários. E é absolutamente verdadeira. A diferença nos vários documentários é quem começou com a violência que resultou no golpe de Estado. O golpe de 2002 mostrou que certas elites pensam que é possível apagar a história, como com um interruptor, e voltar ao passado, o que é uma coisa impensável. Foi um dos grandes erros. É um comportamento muito típico na Venezuela: quando Chávez tenta o golpe em 1992, também é isso que se propõe. O mesmo aconteceu em 48 e em 58. A nossa história está cheia de gente que toma o Estado para tentar mudar tudo. São elites que se sucedem, novas elites que se seguem a outras elites e enriquecem à conta do Estado. O grande desafio é como criar uma sociedade democrática, equilibrada, com oportunidades para todos. Não sei se isso é possível num futuro próximo. Sinto que tivemos um retrocesso em relação a esse objetivo, embora também seja verdade que, pelo caminho por que íamos antes de chegar Chávez, também não o íamos conseguir. O meu problema com tudo isto é que eu venho de uma esquerda formada no antimilitarismo.
Qual é essa esquerda? No seu livro, o irmão do médico (Miguel), António, vem da extrema-esquerda.
O meu percurso é muito mais semelhante ao de António que ao de Miguel. Quando era muito jovem, eu era marxista-leninista-maoista, linha de pensamento de Mao Tsé-Tung. Depois estive num partido em que militou Maduro [o atual presidente], chamado Liga Socialista, que tinha um braço armado, a OR (Organización de Revolucionarios), e já na universidade fui candidato deles. Pouco a pouco fui-me distanciando da ideia de vanguarda de Lenine e começámos, no grupo em que eu estava, a esquecer-nos dos partidos e a dissolver-nos nas organizações populares. Fiquei mais ligado ao desenvolvimento de organizações culturais e jornais de base.
E atualmente?
As etiquetas de esquerda são complicadas. Embora tenha mudado, acho que sou de esquerda, mas uma esquerda anticomunista. À minha geração custou muito o caso cubano, descobrir que podemos estar contra o bloqueio e contra Fidel. Fomos muito solidários com a revolução nicaraguense, no meu grupo político mandámos gente para a revolução sandinista, e foi uma das maiores deceções que tivemos. Hoje vejo Daniel Ortega e tenho nojo e horror.
Aquilo que pergunto é que se era possível esses processos políticos serem diferentes. Há uma célebre frase de um ditador do México, país onde vive: “O problema do México é que está muito distante de Deus e muito perto dos Estados Unidos.” É possível fazer uma mudança e mantê-la com um império agressivo ao lado, como prova o caso chileno e o golpe de Pinochet? Isso não é líquido.
O problema é que à conta das dificuldades do contexto se legitimam uma data de coisas. À conta do papel dos EUA, legitima-se que Fidel esteja 50 anos no poder. Apesar de alguns triunfos da revolução na área da saúde e da educação, apesar do bloqueio, nada justifica Fidel. Eu sou um antifidelista. A última vez que lá fui foi durante o período especial e disse a mim mesmo que não voltava. As pessoas estavam muito mal e a nomenclatura continuava a viver como se nada tivesse acontecido. O problema é como manter uma democracia sem que seja totalmente liberal, com um Estado que regule a favor do combate às desigualdades, mas em que o Estado seja também controlado pela sociedade civil, e que todo esse processo – e para mim isso é muito importante – não seja militar. Eu sinto que temos uma debilidade que é a nossa dependência dos resultados da indústria do petróleo. Chávez teve uma grande oportunidade de transformar este país e perdeu-a. E não a perdeu por culpa dos inimigos externos e internos, mas por culpa dele.
Um problema do petróleo é que se pode dar dinheiro às pessoas e diminuir a desigualdade momentaneamente, mas se não se dá poder às pessoas, não se mudam as estruturas dessa injustiça.
O que se passa é que em todo esse processo, como no caso cubano, há todo um processo de organização popular e comunal daqueles que estão em baixo. O principal inimigo disso é o partido do governo. É uma revolução muito corrupta. Tenho amigos que trabalham no governo. Entendo os níveis de dificuldade. Não se pode resolver tudo com um nível de simplicidade e com uma fidelidade absoluta a um determinado poder.
Qual é o caminho para resolver as enormes desigualdades na região de uma forma civilizada? Não deve ser fácil abrir a tampa da panela e esperar que tudo seja calmo.
Não sei. Não creio que alguém tenha a resposta. O que tivemos foram tentativas. Acho que todos os povos têm o direito a desejar uma mudança na sua vida. Pode até haver exemplos interessantes nesse sentido, vamos ver como está a funcionar o Equador. É preciso deixar passar o tempo para fazer uma avaliação. Mas o caso da Venezuela vai ser terrível. A mim, o que me aterroriza é que haja um processo pendular que faça voltar tudo ao extremo oposto. Porque é que este legítimo desejo de mudança tem de ser castigado pela história? Acho que neste processo iniciado com Chávez melhorou muita coisa na sociedade venezuelana: há o ganho de consciência das pessoas, há a inclusão no processo político de uma série de gente e há uma cidadania que tem muito mais consciência dos seus direitos. Mas mantêm-se muitos problemas, continuamos a ser uma sociedade rentista e dependente do petróleo. Chávez desenvolveu esta figura do caudilho moderno, pessoalizando todas as coisas, até o gasto do dinheiro público, como se tudo emanasse da sua figura.
No seu livro há uma personagem, uma jornalista canadiana, que diz que há o problema do carisma, do carismático, mas que raramente se percebe como surgem os carismados, as pessoas que são os adoradores do líder.
Isso interessa-me muito. Acho que a experiência de Chávez devia fazer-nos pensar: como é que uma sociedade se torna um campo em que as pessoas se dividem em gente que está a favor e contra um homem? O que há em nós para sermos campo de um carisma? Penso que a Venezuela é um país muito diferente do resto da América Latina por causa do petróleo. Aqui sempre houve mais mobilidade social que no resto do continente. Há uma quantidade de ricos que não eram ricos há 15 anos, e os que eram a aristocracia e o poder há 20 anos estão quase sem dinheiro. A ideia de riqueza e trabalho é diferente.
Estava convencido de que fosse semelhante a outros países. Uma coisa que me impressionou, por exemplo, na Colômbia, é que se vê o prédio gigante do maior jornal diário do país, um imenso edifício, e quando se vai ver a ficha técnica do jornal, desde os proprietários até ao chefe de redação, são todos da mesma família. Não é o caso na Venezuela?
No caso de que fala, “El Tiempo”, são todos Santos, e o presidente também. Essa divisão com famílias ricas e poderosas é muito clara na Colômbia. Mas na Venezuela não é porque as coisas estão muito mais misturadas. Isso tem que ver com o facto de a grande riqueza, o petróleo, pertencer ao Estado, e isso, de repente, pode distribuir-se de uma forma diferente.
Essa distribuição e possibilidade de ascensão social é mesmo assim tão generalizada ou, como dizia um teólogo da libertação sobre o Brasil, o país era uma espécie de Belíndia, tinha dez milhões como a Bélgica e o resto como a Índia…
Antes, possivelmente, era assim. O problema é que, para nós, esta correção das injustiças dependeu sempre do petróleo. Estivemos mais de dez anos com o petróleo a mais de 100 dólares, e Chávez conseguiu, durante esse período, dar a sensação às pessoas de que o petróleo lhes chegava de maneira direta. As pessoas sentiam, em subsídios e apoios sociais, que o dinheiro lhes era dado. Foi durante muito tempo uma grande bebedeira e as pessoas pensaram que isso seria para sempre. E fê-lo de uma maneira mais alargada e democrática que antes, quando as receitas do petróleo ficavam para muito poucos. O modelo de Chávez não deixou de ser rentista em relação ao petróleo e, simultaneamente, isso permitia uma gestão conflituosa do poder. Se Chávez não chegava, por exemplo, a acordo com os industriais de carne, dizia “muito bem” e comprava carne no estrangeiro. Resultado: a indústria de carne local ia à falência. Chegamos à crise com os preços baixos e o país destruído.
Vai regularmente à Venezuela? E é pacífico para si?
Cada ano vou agora três meses, de novembro a janeiro. É pacífico, vivo a mesma insegurança de todos os cidadãos.
Numa entrevista disse que antigamente as pessoas não conseguiam chamar ditadura à Venezuela porque, aterrando no país, se viam jornais e emissões de televisão a chamar nomes ao presidente, mas que agora a Venezuela é mesmo uma ditadura. Apesar disso, está lá à vontade.
O governo aproveitou a crise económica para suspender parte das eleições. Não só o chamado referendo revogatório [mecanismo constitucional que permite aos cidadãos da Venezuela pedirem um referendo para a demissão de qualquer eleito ] – o ano passado deviam ter sido realizadas eleições para governadores e ainda não foram marcadas pelo Conselho Nacional Eleitoral, que está controlado pelo chavismo. Quando se fala em ditadura, fala-se em termos modernos, não é ao estilo Pinochet, por isso custa tanto dar-lhe o nome. Quando na América Latina se fala em ditadura pensa-se em Pinochet, e, na Venezuela, a situação é muito diferente, embora haja cada vez mais presos políticos. Mas eu todos os domingos escrevo uma coluna num jornal venezuelano contra Maduro e contra o governo.
Mantém alguma relação com Maduro?
Com Maduro, não. Chávez, estive com ele uma vez, no México.
Como foi?
Foi muito simpático. Ele era um brincalhão. Aconteceu assim: depois das eleições, o seu vice-presidente, Rangel, eu conhecia-o. Ele escreveu-me a dizer que eu era muito crítico e que as coisas não eram exatamente como eu as colocava. E que eles iam estar no México e que eu fosse ter com eles a uma praça. Eu fui e então apareceu o Chávez sorridente a dizer, a brincar: “Barrera, tu bates-me aos domingos, mas eu vou-te responder”. Era um tipo muito simpático. Era um tipo com graça que contava piadas.
Uma coisa impressionante no seu livro é a permanente sensação de insegurança. Como é isso possível?
A criminalidade tem vindo a crescer desde antes da tomada de poder por parte de Chávez. É interessante porque nós, de esquerda, associamos a criminalidade à pobreza. Pensamos: se houver menos pobreza, necessariamente haverá menos criminalidade. Se esta se reduziu, porque é que o crime continua a aumentar? Não sei a razão, talvez seja uma questão cultural, mas também é verdade que existem muitas armas disponíveis. Há um momento em que um general do governo diz que há entre sete e 15 milhões de armas ilegais em todo o país. A verdade é que não sei como se deu este processo tão forte. Não há estatísticas oficiais sobre o número de assassinatos há uns anos. Há uma absoluta impunidade. Há um sacerdote salesiano que vive nos bairros populares, chamado Alexandro Moreno, que estuda o fenómeno. Tem um livro em quatro volumes que se chama “E saímos a matar gente”, retirado de uma frase de um sicário [assassino a soldo] jovem. Aliás, a maioria dos mortos são entre eles, em guerras de bandos por controlo de território. Agora é verdade que a linguagem de Chávez, que era um militar, foi sempre muito beligerante, e isso também não ajudou à pacificação da sociedade. Há uma violência que está nas ruas, mas também vive nos discursos, como a ideia de que, nas eleições, ia “pulverizar” a oposição. Todo este tipo de discurso reproduz e amplia uma violência na sociedade.
Mas a violência política é muito anterior a Chávez. O presidente social–democrata Andrés Pérez exerceu uma repressão violentíssima, com muito mais que palavras [mais de 300 mortos e 3 mil desaparecidos].
Por isso Chávez tinha, no início, duas bandeiras para se distinguir do passado: uma era a luta contra a pobreza e a corrupção, e outra era uma oposição à repressão, porque vinha do exército e dizia que o tinham colocado a reprimir as pessoas. Custou-lhe reprimir as pessoas, coisa que a Maduro não custa nada. Ganhou o poder e quer mantê-lo de todas as formas. E deu muito mais poder às forças armadas do que Chávez. Há uma nova legislação que permite às forças armadas reprimir manifestações com armas de guerra, coisa nunca vista. A existência da violência e as suas causas é um tema muito complicado, não me atrevo a opinar muito sobre isso.
No seu romance, o jornalista acaba por submeter-se à realidade e deixar-se corromper. É cético em relação ao presente e ao futuro?
Os problemas éticos no romance não passam por ser ou não ser chavista, mas são ditados pelo enfrentamento da realidade e pela necessidade de as pessoas sobreviverem, como se sobrevive e como as pessoas se submetem a uma realidade difícil e complicada. Tenho família que se desvinculou da preocupação política porque as pessoas têm de sobreviver e não podem estar num estado de mobilização política permanente. As pessoas viviam como se o apocalipse fosse amanhã, mas faziam isso todos os dias. É impossível viver assim. Também contribuiu para isso a degradação da situação económica, que obrigou as pessoas a tratarem da sua vida.