A história de Amália Rodrigues é pública e notada, mas a dimensão internacional alcançada pela cantora nem sempre é mediatizada. “A Édith Piaf nunca teve uma carreira assim. Aquela voz fazia tudo. Ela foi de uma dimensão total e transversal, passando por países como a Nova Zelândia e o Japão, numa época sem festivais de música do mundo e que durou quase 60 anos”, destaca Frederico Santiago, investigador e responsável pelas recolhas de “Amália em Itália”, volume triplo a editar no dia 7 de abril.
“Cantou em sítios impensáveis para um artista ‘ligeiro’ como o Carnegie Hall (Nova Iorque). Em Itália, tanto cantava nos sítios mais eruditos como numa praça. A Amália sempre esteve entre o popular e o erudito. Tinha uma maneira erudita de abordar a música, mas era uma voz do povo”, salienta.
A primeira troca de olhares com os italianos acontecera “na década de 50, num concerto integrado no Plano Marshall”, recorda Santiago. Nos anos seguintes, visita esporadicamente o país. O romance definitivo só se dá em 1970, perto de completar 50 anos – época de “Com Que Voz”, aquele que é talvez o mais reconhecido álbum da sua extensa obra –, quando já conquistara o mundo e dá um recital em janeiro no Teatro Sistina, em Roma.
“Naquele período houve um boom da folk, como a Joan Baez. E o agente da Amália em Itália (o conhecido empresário do mundo do espetáculo Franco Fontana) organizava concertos de grandes nomes como a Ella Fitzgerald”, conta. Amália regressou a Itália nesse ano “e foi uma loucura. Tornou-se a artista estrangeira mais amada. Chegava a dar 50 concertos por ano, não só nas grandes cidades como nas vilas, e até ao fim da carreira dela”, contextualiza. O público respondia com palmas ritmadas e trauteando as canções.
Como explicar este namoro? “É um pouco inexplicável”, reconhece. O público italiano era muito participativo e a Amália era inteligente”, aponta. Quando subia ao palco para cantar, Amália, a fadista, transfigurava-se em Amália, a cantora, confirma. “Tinha essa noção. Antes de tudo, era uma cantora. É a grande voz do fado, mas não cantava só fado. Chegava a cantar apenas dois fados num concerto.” Parte do repertório apresentado e agora resgatado a concertos da época era folclórico. O português não era um problema. “Ela cantava em português, espanhol e italiano. Em algumas canções usava dialeto das províncias siciliana e napolitana.”
Além do boom da folk e das vozes proféticas, uma outra transformação ajuda a fazer deste um período crucial na carreira. “Ela estreia-se em 1939, começa a cantar internacionalmente em 1944, no Brasil, e, nessa época, os microfones eram fixos.” A Amália Rodrigues imóvel em cena passa a pedir palmas graças aos microfones que “deixam uma mão livre”, descreve o investigador. A mão esquerda esvoaçante que se aproxima da pose guardada no imaginário coletivo. Era tempo de celebrar a liberdade e o corpo acompanhava-a.
E desse sincronismo entre o canto, a fala e a linguagem corporal nasce a vedeta adotada que chega a passar meses consecutivos em Itália. “Era mesmo uma vedeta. Atuava nos principais programas de televisão. Era uma presença constante, não se tratava de aparições esporádicas. Quando ela morre, o ‘Corriere della Sera’ chama-a para a capa. O excesso nunca lhe subiu à cabeça, mas ela teve um estatuto de vedeta internacional”, sintetiza Frederico Santiago.