“Não me sinto culpado por ter inventado o mecanismo.” As palavras pertencem ao antigo diplomata britânico John Kerr, o homem que redigiu a primeira versão do texto que viria a ser transformado no artigo 50.o do Tratado de Lisboa, o tal que estabelece os passos necessários para um Estado-membro formalizar um pedido de saída da União Europeia e que vai ser acionado hoje, pela primeira vez, pelos seus compatriotas. Afastado o sentimento de culpa, há, no entanto, lugar para a tristeza. “Nunca pensei que seria o Reino Unido a utilizá-lo”, confessa o ex-diplomata.
Absorvidos na mesma melancolia que o lorde Kerr de Kinlochard tentava ilustrar ao Politico estarão, seguramente, os mais de 16 milhões de britânicos que, no longínquo dia 23 de junho de 2016, votaram pelo remain – juntamente com mais uns quantos arrependidos – no referendo que colocou nas mãos da população a decisão sobre o futuro europeísta do Reino Unido e que resultou na opção pelo Brexit, amparada por uma maioria ínfima, mas legítima, de 51,9% dos participantes.
O inesperado desfecho da votação apanhou britânicos e europeus de surpresa, pelo que os 277 dias que nos separam da demissão, nessa mesma noite, de David Cameron – o homem que apresentou e integrou a consulta popular vinculativa sobre a UE na sua lista de promessas eleitorais, antes das legislativas que lhe viriam a dar maioria absoluta em maio de 2015 – testemunharam uma verdadeira corrida de obstáculos, percorrida de forma pachorrenta e desanimada durante largos meses, e encarada como caso de vida ou de morte entre janeiro e o dia de hoje.
Os últimos meses de 2016 foram, portanto, de choque. Como convencer um país dividido a avançar para um divórcio, nunca visto nos 60 anos da história da comunitária europeia, e cujo desfecho final prevê ainda mais nuvens do que aquelas que pairam teimosamente por cima das ilhas Britânicas durante quase todo o ano? Foi com esta hercúlea missão pela frente que Theresa May avançou, após uma tímida campanha pela permanência, e que figuras como Boris Johnson ou Liam Fox se remeteram a papéis secundários, após uma campanha desinibida pela saída.
Glórias e fracassos
Por entre críticas internas e externas à (alegada) inexistência de uma estratégia palpável para as negociações com a União e abalado por demissões embaraçosas de funcionários-chave, o novo governo esperou até aos primeiros dias de outubro para anunciar a intenção de acionar, em março deste ano, o mecanismo pensado por Kerr. A definição de uma meta concreta até retirou alguma pressão de cima dos ombros do executivo, mas foi sol de pouca dura. No mês seguinte, o Tribunal Superior britânico decidiu a favor da obrigatoriedade da aprovação, pelas duas câmaras de Westminster, da formalização do pedido de abandono da UE, argumentando que a Lei das Comunidades Europeias, de 1972 – negociada e aprovada pela assembleia legislativa britânica aquando da entrada do país na antiga Comunidade Económica Europeia –, não poderia ser ultrapassada apenas recorrendo ao poder ministerial. “O tribunal não está interessado e não expressa qualquer visão sobre os méritos de sair da União Europeia: isso é uma questão política. Isto é uma simples questão de direito”, explicaram os juízes, perante a fúria de May e, claro, do excêntrico Nigel Farage do UKIP, numa deliberação que surgiu em resposta a uma ação interposta por um grupo de cidadãos.
Ao longo de todo o processo, o governo sempre acreditou que o resultado do referendo lhe fornecia a legitimidade necessária – leia-se, a competência exclusiva – para acionar o artigo 50, sem necessitar de quaisquer outras instituições de soberania, pelo que foi sem grandes surpresas que pediu recurso da decisão do Superior ao Supremo Tribunal do Reino Unido. E enquanto esperava pelas conclusões das audiências de dezembro, que também contaram com a intervenção de responsáveis políticos da Escócia, do País de Gales e da Irlanda do Norte, decidiu apresentar, enfim, um plano.
“Os dias das grandes contribuições dos britânicos para o orçamento comunitário acabaram”, afiançou a mais confiante Theresa May dos últimos tempos, em meados de janeiro deste ano, na hora de anunciar as prioridades de negociação com os parceiros europeus. A solução escolhida? Um “hard Brexit”, pois, alicerçado em 12 mandamentos que possam garantir que o Reino Unido não fica “nem meio dentro nem meio fora” da UE, mas totalmente livre para se transformar no “seu melhor amigo” e na “nação comercial global” de outros tempos.
Para desespero da Escócia, onde o remain venceu largamente o leave no referendo de junho, o destaque da estratégia foi todo para a decisão pela renúncia britânica ao Mercado Único Europeu e às “quatro liberdades” – circulação de bens, capital, serviços e pessoas – a ele associadas, que tornam impraticável a convivência comum de medidas de controlo da imigração com a pretensão da não aplicação das leis oriundas do Tribunal de Justiça da UE aos britânicos. Juntamente com esta e com as restantes prioridades, foi ainda anexado um aviso à navegação (europeia): “Um não acordo é melhor do que um mau acordo.”
O sprint final
Se o balão de oxigénio de outubro ainda durou um mês, o aumento dos índices de confiança do executivo, após a apresentação do plano, durou menos de uma semana. Argumentando que os “direitos gozados pelos residentes no Reino Unido, garantidos pelas leis europeias, ficarão afetados” pela “alteração fundamental” nas disposições constitucionais britânicas resultante do abandono da União, o Supremo Tribunal veio dar razão ao Tribunal Superior e confirmou a obrigatoriedade da aprovação parlamentar. Novamente encostada à parede pela justiça, May apresentou então, no parlamento, o Ato (de Notificação de Retirada) da União Europeia 2017, uma proposta de lei descrita pelos deputados da oposição como “insultuosa” e “ultrajante”, já que era composta apenas por 137 palavras, repartidas em duas alíneas sucintas.
Mas havia um prazo para cumprir e, por isso, a maioria tory na câmara baixa de Westminster aprovou facilmente o documento, no início de fevereiro, numa votação que provocou demissões e atos de rebeldia no seio do Partido Trabalhista, decorrentes da imposição de disciplina de voto, por parte de Jeremy Corbyn, que obrigava os seus deputados a votar favoravelmente o texto, no sentido de “não criar obstáculos” ao Brexit – 52 membros do Labour violaram a ordem partidária e algumas figuras do “governo-sombra” apresentaram mesmo a demissão.
Chegou então o profético mês e com ele regressaram os contratempos para Theresa May. A Câmara dos Lordes, que andava a debater há uns dias a proposta de lei do executivo, entendeu que a mesma não estava em condições de receber o “consentimento real” necessário e decidiu apresentar duas emendas ao texto – fruto de votações que bateram recordes com mais de 180 anos – que ameaçavam tornar a autorização parlamentar, imposta pelo Supremo, num verdadeiro jogo de pingue-pongue entre as duas assembleias do órgão legislativo britânico. As pretensões dos lordes eram claras: por um lado, procuravam assegurar que o texto final incluísse uma disposição que vinculasse o governo a priorizar a garantia dos direitos adquiridos pelos europeus residentes em solo britânico e pelos expatriados nos Estados-membros da UE, no pós-Brexit; por outro, exigiam a realização de nova votação, nas duas câmaras do parlamento, de aprovação ou rejeição do acordo final com a União Europeia.
David Davis, ministro para o Brexit, comprometeu-se “moralmente” com a primeira emenda e prometeu manter Westminster informado sobre todas as etapas das negociações, mas o Partido Conservador decidiu socorrer-se, uma vez mais, da posição maioritária na Câmara dos Comuns e ultrapassou as emendas dos lordes, abrindo caminho à formalização da saída dentro do prazo definido – e à oficialização da intenção escocesa de avançar para um novo referendo independentista em 2018.
Passaram, pois, 277 longos dias entre o resultado do referendo e o gesto simbólico de hoje. Tim Barrow, representante do Reino Unido em Bruxelas, irá deixar nas mãos do presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, a carta do governo que formalizará o pedido de saída e, a partir desse momento, dar-se-á início a uma nova contagem decrescente rumo ao desagrilhoamento final. Nas ilhas Britânicas pensarão seguramente o contrário, mas a verdade é que, para já, o Reino Unido apenas se ajeitou na casa de partida, tal como a “nova União Europeia”. Lancem-se então os dados.