Luís Severo. De cara de anjo a homem feito

Álbum em que se vê ao espelho através das canções é apresentado em duas noites no Teatro Ibérico. A primeira está esgotada

Já foi Cão da Morte e já foi um dos Flamingos, mas agora Luís Severo é apenas… Luís Severo. Um autor de canções que se vê ao espelho através delas. Por isso escolheu o nome de cédula para designar um álbum que, apesar de elaborado aos míseros 24 anos, tem nove de gestação. “Comecei a escrever com 15 anos em casa. Andava na escola. Apanhei a época do MySpace e isso estimulou-me a ter o método de fazer música em casa e descarregar na internet. Era uma coisa solitária, mas não era muito identitária. Pensei numa coisa anónima. Quando fiz a página, não tinha objetivos. Só comecei a tocar um ano e tal depois. Isso fez-me abandonar o ‘Cão’ e adotar o nome. Já tinha a minha pessoa vincada”, recapitula. 

Nesse processo de aproximação ao mundo ousou dois EP “experimentais” e “livres de dogmas” ainda como Cão da Morte – o nome vem de uma das mais pesadas canções dos Mão Morta -, mas é em 2015 que grava “um disco com objetivos sérios”. O cartão-de-visita como Luís Severo, retrato do contemporâneo de uma geração de escritores de canções personificada por B Fachada ou Samuel Úria, à procura da conciliação entre mocidade e maturidade. “Era o momento ideal para fazer essa transição”, refere. Entre o passado de heterónimos construídos em ambiente digital e o presente de um rapaz a fazer-se homem. 

“Luís Severo” recebe o nome do criador. Pelo crescimento assumido, por ser um autorretrato fiel ao seu tempo, mas não só. “Os álbuns homónimos ou são ultraíntimos ou são saltos na obra, e eu pensei que este disco tem um pouco das duas coisas”, defende. E acrescenta: “Todos os cantautores acabam por gravar álbuns homónimos. Na música brasileira há uma série de álbuns do Chico Buarque e do Jorge Ben com o nome deles. Provavelmente voltarei a fazê-lo”, antevê.

A figura frágil e o ar jovial não denunciam nem o conhecimento adquirido, nem a carta de intenções. O momento é de aproximação ao público, denunciado por uma primeira noite esgotada no Teatro Ibérico (amanhã) e por uma segunda a caminho de ter a plateia lotada, mas estas canções preservam “uma linguagem pessoal” e um espaço privado de construção.

Severo já pertence a uma geração que cresceu a ouvir música portuguesa sem complexos de inferioridade. De ouvinte a escritor de canções, passou por “Leonard Cohen, Chico Buarque, Bob Dylan, Tom Waits, Nick Cave, Beatles e Beach Boys”, mas sempre com o desejo de “ouvir canções na nossa língua”. “Tem muita graça ouvir os Beatles, mas não conhecemos as ruas em que aquilo se passa. Não sabemos que bairros são aqueles. Só conhecemos porque fomos lá passear um dia”, defende. Foi no MySpace que conheceu “Samuel Úria, B Fachada, Tiago Guillul, Pontos Negros e Feromona”, ou seja, uma fornada de bandas e músicos que, cansados de traduções, adaptações e interpretações, adotou a portugalidade como um código de identificação e não como um problema linguístico. “É sempre importante haver um legado de pessoas que estão antes e tentaram fazer mais ou menos a mesma coisa. É mais fácil arrancar a partir daí do que a partir do zero”, reconhece. “A Flor Caveira e a Amor Fúria apareceram num pós-anos 90 muito complicado em que toda a gente cantava em inglês”, concorda. “Umas sobreviveram, outras não, mas foi muito importante ter acontecido e influenciou-me, apesar de ter sempre ouvido outras coisas mais recentes, como o Sufjan Stevens, o Elliott Smith e o Bonnie ‘Prince’ Billy.”

O contacto com o meio começou pela música, mas chegou à fala. Severo recorda que não só “ia aos concertos” como “lidava com o lado mais humano”. E assim pôs em prática um faça-você-mesmo que, para a geração da internet, deixou de ser entrave e exceção para se tornar uma circunstância natural e uma permissão da autonomia criativa e de gestão do caminho. 

“Era um cinismo enorme assumi-lo como opção. Nunca tive outra escolha. É uma consequência. E quanto mais evoluo, menos independente vou sendo. Neste momento, a Sony distribui o meu disco”, sorri.

Alvalade chamou por Odivelas e Luís Severo veio do subúrbio para o centro. A geografia resulta num “álbum muito alfacinha”, admite, gravado no estúdio dos Capitão Fausto, com os músicos da banda e ainda selado pela editora destes, a Cuca Monga. “A pessoa com quem toco há imenso tempo, o Diogo Rodrigues, é o técnico de som deles, acompanha-me sempre. Há um ano e tal pedi-lhe para me juntar ao estúdio, pondo o meu equipamento à disposição de todos. É um estúdio bastante familiar, de facto”, descreve. 

Durante as gravações, o guitarrista dos Capitão Fausto, Manuel Palha, “trouxe ideias diferentes, menos estéticas e dogmáticas, mais livres, abertas e objetivas”. Formou-se um núcleo a três, liderado por Luís Severo, com a ajuda de Tomás Wallen-stein no violino e de Francisco Ferreira nas teclas e no grafismo. E apesar do nome individual, “Luís Severo” foi um trabalho de grupo com várias camadas. 

O licenciado em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas com média de 15 e assumidamente “mau sociólogo” já adotara um plano no anterior “Cara D’Anjo” por “não saber fazer mais nada”. Deu concertos, juntou dinheiro, investiu em equipamento de estúdio e agora tem em “Luís Severo” um autorretrato individualizado de uma obra construída a várias mãos. 

No Teatro Ibérico apresentar-se-á sozinho ao piano como num dos discos que guarda para a vida: “Só”, de Jorge Palma. E a seguir? “Quero continuar a fazer aquilo de que gosto e a poder viver disso. Se aparecerem convites, como já houve um ou dois, para compor para outros intérpretes, também me dá gozo.” Severo alude a uma canção escrita para a voz de Cristina Branco no álbum “Menina”. Mediaticamente visível ou silenciosamente ativo, remata: “Não sei se vou querer estar sempre a aparecer. Compor para outras pessoas permite-me estar apagado a escrever canções, que é do que eu gosto.”