Poder. Trump e o Brexit podem ter ganho devido ao seu like

Os big data podem prever para onde você vai viajar, que música quer ouvir e até convencê-lo a votar em candidatos como Donald Trump

No dia 9 de novembro de 2016, uma empresa americana pouco conhecida, com sede em Londres, divulgou um comunicado à imprensa: “Estamos muito felizes por a nossa abordagem revolucionária à comunicação dirigida por dados ter desempenhado um papel tão essencial na extraordinária vitória do presidente eleito Trump.” O CEO da Cambridge Analytica é Alexander James Ashburner Nix. É britânico e tem 42 anos. Veste-se sempre cuidadosamente, com roupa de alfaiate de Savile Row, e tem a pronúncia de Eton, um dos mais exclusivos colégios privados britânicos. Fontes próximas da empresa fazem constar que aos métodos revolucionários da Cambridge Analytica dever-se-ia, não apenas a vitória de Trump, mas também a campanha bem-sucedida do Brexit.

Numa reportagem para a revista alemã “Das Magazin”, os jornalistas Mikael Krogerus e Hannes Grassegger apontam uma coincidência: nesse fatídico dia em que foi anunciada a vitória de Trump, Michael Kosinski, 34 anos, estava em Zurique para dar uma conferência sobre os perigos dos big data (metadados). Desde há anos que faz essa profissão de fé sobre uma sociedade em que a reserva da vida privada pura e simplesmente desapareceu. Kosinski sabe do que fala: é um especialista em psicometria, um sub-ramo da psicologia baseado em dados, e o homem que, sem querer, terá potenciado a vitória de Trump.

E dados é o que não falta para aí. Segundo garante o “Le Monde Diplomatique”, venderam-se em 2015 1,424 mil milhões de smartphones, mais 200 milhões de telemóveis inteligentes que no ano anterior. Mais de um terço da humanidade anda com um computador no bolso. Segundo dados da IBM, de 2012, cada dia recolhem-se mais de 2,5 triliões de dados. Cada telemóvel recolhe uma infinidade de dados sobre nós: as nossas conversas, as nossas mensagens das várias redes sociais, os sítios e as horas em que lá estamos, junto de quem, com telemóvel, andamos – muitas vezes, caso sejam feitas por internet ou cartão de crédito, até as compras que fazemos.

Nos anos 70, o economista norte-americano Dallas Smith alertava que qualquer pessoa que estava à frente de um ecrã era um trabalhador não remunerado. Era sobre a televisão que falava quando dizia que “contribuímos com o nosso trabalho não remunerado e, em troca, levamos com publicidade e programas”. Isso vale para um meio de comunicação de massas como a televisão, e vale ainda mais para a comunicação mediada por computador, que permite segmentar “os consumidores” até ao indivíduo.

O trabalho não pago do internauta é muito mais ativo que o do telespetador: cada like ou interação que nós fazemos nas redes sociais revela muito mais de nós, dos nossos hábitos de consumo, tendências políticas, fé religiosa – do que somos. Essa informação pode ser usada e tem um valor económico.

Era esse o trabalho de investigação de Kosinski, descobrir as características das pessoas a partir das interações que tinham no Facebook e, sobretudo, dos likes que faziam. Há muito – desde os anos 80 – que a psicologia, concretamente o seu ramo da psicometria, tinha desenvolvido modelos para avaliar a personalidade das pessoas. O chamado modelo OCEAN avalia cada um de nós segundo cinco traços de personalidade: abertura (se estamos abertos a novas experiências), consciência (o nosso grau de perfeccionismo), extroversão (se somos sociáveis), afabilidade (se somos cooperantes e atentos) e neurose (se nos aborrecemos com facilidade). O problema é que para traçar esse perfil era necessário preencher um longo questionário. O que Michael Kosinski fez foi conseguir criar um equivalente a este teste a partir das interações no Facebook. Trabalhando a partir de milhões de questionários recolhidos na internet, Kosinski conseguiu estabelecer relações estatísticas entre determinados likes e determinadas características.

Segundo os jornalistas da “Das Magazin”, em 2012, Kosinski provou que com uma média de 68 likes no Facebook era possível descobrir a cor da pele de alguém (com 95% de probabilidade), a sua orientação sexual (88%) e a sua preferência pelo partido democrata ou republicano (85%). Este método também podia dizer o nível de inteligência e a crença religiosa, assim como o consumo de álcool, tabaco e droga.

O método permitia avaliar melhor uma pessoa do que os seus colegas de trabalho, simplesmente com base em dez likes no Facebook. Setenta likes eram suficientes para exceder o que um amigo da pessoa sabia; 150, o que os seus pais sabiam; e 300 likes, o que seu companheiro sabia. No dia em que Kosinski publicou esses estudos recebeu, segundo a revista alemã, dois telefonemas: a ameaça de um processo e uma oferta de trabalho. Ambas do Facebook. Foi a partir dessa época que a rede social deixou de permitir, no seu algoritmo, aos outros utilizadores o acesso imediato aos nossos likes.

Mas nada disso impede, na prática, que determinadas empresas o consigam. Sempre que a gente preenche aqueles simpáticos testes no FB, do género de “qual é o ator da ‘Guerra dos Tronos’ que você é?”, estamos a autorizar que nos fiquem com estes dados, que são posteriormente guardados e comercializados.

É a partir de métodos semelhantes a estes que o grupo de comunicação britânico Strategic Communication Laboratories, e a sua extensão norte-americana, Cambridge Analytica, atuam.

Segundo vários meios de comunicação social, esta empresa com escritórios em Nova Iorque, Washington e Londres têm como principal financiador o milionário dos big data, o americano Robert Mercer, um ultraconservador e cético em relação às alterações climáticas que, segundo o site Politico, investiu 10 milhões de dólares nestas empresas.

A Cambridge Analytica garante ter mais de 5000 data points (um conjunto de uma ou mais medidas sobre uma pessoa) por cada um dos 220 milhões de norte-americanos. Isso permitir-lhe-ia segmentar o eleitorado, percebendo as “alavancas”que permitiriam mobilizar os apoiantes e desmobilizar os adversários, com propaganda direcionada e personalizada para cada eleitor.

Por exemplo, enviar propaganda de Trump a cada pessoa que tem preferência por carros dos EUA – gosto associado a uma determinada posição pró-republicana – e enviar vídeos em que Hillary Clinton comenta que “os negros cometem crimes” a eleitores afro-americanos, tradicionais apoiantes dos democratas. “Como alardeava o comunicado da Cambridge Analytical, estes métodos podem ter tido um papel determinante na identificação dos partidários de Donald Trump e para convencer os eleitores indecisos a irem às urnas.”

Como se escreve na revista “Das Magazin”, Kosinski possibilitou esta revolução digital, Nix executou-a e Trump foi quem mais beneficiou dela.