Quando Amália foi estrela em Itália

Amália em Itália recupera um período crucial, quando a fadista conquistou o público italiano e se aproximou da imagem expressiva guardada na memória coletiva, e chama a atenção para a projeção internacional que alcançou.

A biografia de Amália Rodrigues é conhecida mas a dimensão mundial projetada pela voz nem sempre é reconhecida. Esta é pelo menos a opinião de Frederico Santiago, investigador e responsável pelas recolhas de Amália em Itália, volume triplo a editar na próxima sexta-feira, dia 7. «A Édith Piaf nunca teve uma carreira assim. Aquela voz fazia tudo. Ela foi de uma dimensão total e transversal, passando por países como a Nova Zelândia e o Japão, numa época sem festivais de música do mundo e que durou quase 60 anos», defende.

O caso italiano começa em 1970 embora uma primeira troca de olhares tivesse acontecido duas décadas antes «num concerto integrado no Plano Marshall», Nos anos seguintes, visita esporadicamente Itália. O romance definitivo só se dá em 1970, perto de completar 50 anos – época de Com Que Voz, aquele que é talvez o mais reconhecido álbum da sua extensa obra –, quando já conquistara o mundo e dá um recital em janeiro no Teatro Sistina, em Roma. «Naquele período houve um boom da folk, como a Joan Baez. E o agente da Amália em Itália (o conhecido empresário do mundo do espetáculo Franco Fontana) organizava concertos de grandes nomes como a Ella Fitzgerald», conta. Amália regressou a Itália nesse ano «e foi uma loucura. Tornou-se a artista estrangeira mais amada. Chegava a dar 50 concertos por ano, não só nas grandes cidades como nas vilas, e até ao fim da carreira dela», contextualiza. O público respondia com palmas ritmadas e trauteando as canções.

 

Usava dialeto siciliano

A cantora expressiva e comunicadora com as plateias nascia ali. Como explicar este namoro? «É um pouco inexplicável», reconhece Santiago. «O público italiano era muito participativo e a Amália era inteligente». Quando subia ao palco para cantar, Amália, a fadista, transfigurava-se em Amália, a cantora. «Tinha essa noção. Antes de tudo, era uma cantora. É a grande voz do fado, mas não cantava só fado. Chegava a cantar apenas dois fados num concerto». Parte do repertório apresentado e agora resgatado a concertos da época era folclórico. O português não era um problema. «Ela cantava em português, espanhol e italiano. Em algumas canções usava dialeto das províncias siciliana e napolitana», explica. Esse repertório de folclore italiano cantado em dialeto regional italiano está agora compilado_em Amália em Itália, que é composto por um disco de gravações inéditas de estúdio, um segundo com um concerto integral de Roma e um terceiro com registos ao vivo de Roma, Catânia, Palermo e Milão.

Uma transformação técnica ajuda a fazer deste um período crucial na carreira. «Ela estreia-se em 1939, começa a cantar internacionalmente em 1944, no Brasil, e, nessa época, os microfones eram fixos». A Amália Rodrigues imóvel em cena passa a pedir palmas graças aos microfones que «deixam uma mão livre», descreve o investigador. A mão esquerda esvoaçante que se aproxima da pose guardada no imaginário coletivo. Era tempo de celebrar a liberdade e o corpo acompanhava-a.

E desse sincronismo entre o canto, o modo e a linguagem corporal nasce a vedeta adotada que chega a passar meses consecutivos em Itália. «Era mesmo uma vedeta. Atuava nos principais programas de televisão. Era uma presença constante, não se tratava de aparições esporádicas. Quando ela morre, o Corriere della Sera chama-a para a capa. O excesso nunca lhe subiu à cabeça, mas ela teve um estatuto de vedeta internacional», sintetiza Frederico Santiago.

Ainda durante este ano, sairá uma reedição comemorativa de Fados 67, gravado com o Conjunto de Guitarras Raul Nery e que reunirá, pela primeira vez, o total destas sessões. «Algumas já tinham sido editadas, outras não», revela o estudioso da obra de Amália.