O grande cisma entre os partidos americanos provocou ontem a quebra de uma regra histórica que pode abrir portas a que, no futuro, candidatos ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos precisem apenas do apoio de uma das bancadas para serem nomeados, o que, por sua vez, pode levar a que futuros magistrados sejam menos consensuais e mais radicais.
A luta entre democratas e republicanos deu-se em torno da nomeação de Neil Gorsuch, o homem escolhido por Donald Trump para preencher a vaga com mais de um ano provocada pela morte do juiz conservador Antonin Scalia. O desfecho não foi uma surpresa – estava, aliás, agendado há dias -, mas tem repercussões importantes. Os republicanos precisavam de uma maioria qualificada de 60 senadores para encerrar o debate e avançar para a votação, mas os democratas, ressentidos ainda pela jogada conservadora que impediu Obama de preencher a mesma vaga no Supremo com um nome mais liberal, recusaram os votos necessários e optaram por continuar cosmeticamente o debate.
A técnica de falar indefinidamente de forma a travar (também indefinidamente) uma decisão chama-se filibuster. A resposta republicana foi simples: não tendo maioria qualificada para ultrapassar o debate, a bancada conservadora usou a sua maioria simples para acabar com o filibuster, o que liberta o caminho para a aprovação de Gorsuch e estabelece que, a partir de hoje, uma nomeação para o Supremo passa a exigir apenas 50 votos.
A manobra é conhecida como a “opção nuclear” e foi realizada pela primeira vez em 2013, quando então era a maioria democrata que tentava ultrapassar o bloqueio republicano a algumas nomeações. Os liberais, no entanto, decidiram não acabar com o filibuster para o Supremo, ao entenderem que a decisão seria radical.
A decisão de ontem, unicamente formal mas de consequências duradouras, sinaliza uma nova era de intransigência partidária em Washington e no país, já de si entrincheirado em lados opostos desde os meses de campanha presidencial acrimoniosa entre os dois candidatos mais odiados pelos norte-americanos – que terminou na eleição do presidente com menor aprovação de que há registo. Apenas cinco democratas acederam a aprovar Gorsuch que, apesar da sua inclinação ultraconservadora, não mostra qualquer impedimento para desempenhar o cargo de juiz do Supremo. Ao ser aprovado, já de noite, a máxima instância jurídica ficará de novo com uma ligeira vantagem conservadora no coletivo de sete magistrados.
Nunes out O embate em torno do Supremo coincidiu com o dia de chegada do presidente chinês à Florida, onde se encontrará pela primeira vez cara a cara com o novo presidente americano, que diabolizou Pequim ao longo da sua campanha, afirmando que o seu governo não está a fazer o suficiente para conter a ameaça militar norte-coreana e que a sua indústria exportadora é uma das principais razões pelas quais desapareceram as grandes indústrias nos antigos estados fabris americanos. Trump diz ter muito para exigir a Xi Jinping que, por sua vez, não parece ter muito que pedir ao presidente norte-americano, contestado em casa e ainda com grandes dificuldades em fazer arrancar a sua agenda económica e política. O combate de ontem sobre o Supremo, aliás, nem foi o único do dia em Washington: o congressista republicano responsável pela investigação à mão do Kremlin nas eleições, Devin Nunes, demitiu–se da liderança do comité no mesmo dia em que ele próprio começou a ser investigado por divulgar informações confidenciais a pedido da Casa Branca.