Rendas das casas congeladas

Rendas das casas em Lisboa e Porto nunca cresceram tanto, titulava um semanário no dia 25 de março. Acrescentando em subtítulo: Inflação das rendas e turismo expulsam inquilinos. Lisboa e Porto é onde o fenómeno está a alastrar mais rapidamente. Senhorios já não fazem contratos de cinco anos.

É o típico artigo ‘calçadeira’: serve para ajudar a introduzir e preparar a opinião pública para o tema já adivinhado – o regresso ao congelamento das rendas de casa.

Portugal são os Descobrimentos, o ouro do Brasil, a ditadura, as colónias, o amor ao futebol e a Fátima… e as rendas congeladas.

O congelamento das rendas, iniciado em 1910 e que se arrastou décadas a fio, teve três consequências. A primeira (e óbvia) foi moldar a paisagem urbana: sem rendas atualizadas, o património deteriorou-se irremediavelmente. A segunda foi atirar para a ruína milhares de proprietários. A terceira foi a mais profunda: criou uma burguesia urbana que vivia numa habitação sem pagar por ela. Uma burguesia que se habituou a pensar que a casa era uma comodidade, um contrato gratuito, herdado, passado de geração em geração.

Viver numa casa não pagando – ou pagando um valor ridiculamente baixo – permitia afetar todo o rendimento disponível ao consumo, para ir a restaurantes, concertos, comprar livros, ir à ópera, a museus, viajar.

Se alguém receber 1.000 euros de salário, e pagar 10 euros de renda por um apartamento de 5 assoalhadas no centro de Lisboa, sobram 990 euros. Centenas de milhares de lisboetas viveram assim durante três gerações, pelo menos. Foi o tempo que bastou para ficar inscrito no ADN de cada um, para ficar tatuado na consciência coletiva. A habitação não era uma rubrica considerada no orçamento familiar.

Perante isto, os políticos recuaram. A cidade caía aos bocados, mas ninguém se atrevia. Descongelar rendas não era descongelar rendas – era acabar com um modo de vida. Acabar com as idas a restaurantes, com as viagens, com os livros.

Politicamente, o congelamento das rendas de casa foi uma manigância para disfarçar que éramos pobres; mexer na lei, descongelando as rendas, era acabar de uma vez com a manigância e com a burguesia urbana. Se tivessem de pagar renda, não sobrava para sobreviver, quanto mais para consumir. Era transformar a burguesia em proletariado.

Por isso os governos hesitaram, com avanços e recuos. Ninguém quis enfrentar um poderoso exército de centenas de milhares de desapossados. Perder esses votos, seria perder Lisboa e Porto. E perdendo estas cidades não se ganham eleições legislativas.

Saiu a fava ao Governo PSD-CDS: o descongelamento das rendas era um imperativo nacional, todos o sabiam, mas os custos políticos foram e são tremendos. Durante muito tempo estes dois partidos vão pagar o preço político pelo feito.

Agora, a seis meses das eleições autárquicas, as esquerdas no Governo e na Câmara de Lisboa unem-se para trazer o congelamento das rendas de volta.

É a ‘calçadeira’ para entrar no eleitorado urbano.

sofiarocha@sol.pt