A história de Alexandra e de Karen é comum a muitas outras mulheres que optaram por seguir as suas vidas como trabalhadoras do sexo. Decidiram de livre e espontânea vontade, sem coação ou exploração por parte de um proxeneta, um chulo, um “cafetão” – na gíria do Brasil.
O que não é tão comum na história de Alexandra e Karen é a abertura e a força que põem nas vozes de quem fala sem qualquer restrição sobre a sua profissão e a luta por direitos de quem é trabalhadora de uma indústria estigmatizada e marginalizada. Alexandra, de voz séria, com a pronúncia do norte e a fluência de um discurso de quem tem experiência de 18 anos no mercado de trabalho sexual, faz com que qualquer tipo de ouvidos empáticos consiga compreender a perspetiva de quem não tem vergonha em falar do seu percurso profissional.
Karen, brasileira de passagem em Portugal, fala do assunto com toda a naturalidade, de voz relaxada mas com um tom assertivo e objetivo. Alexandra hoje não exerce a profissão sexual, uma vez que foi ameaçada pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CPCJ) ao declarar-lhe guerra quanto à guarda do filho, um dos motivos que a levam a concentrar-se no ativismo e na luta pelos direitos de todos os que são trabalhadores deste mundo, partilhando a sua história com aqueles que a querem ouvir. Karen está de férias em Portugal, onde já teve uma experiência profissional – diz que apesar do português pagar mal, tende a ser um homem carente e cuidadoso.Ambas defendem que a prostituição é uma profissão que tem de ser reconhecida pelo Estado.
A desilusão com os homens
Alexandra tinha 19 anos quando se apaixonou por um suíço bem parecido, alto, com ar de quem estava bem na vida. “Estava encantada”. Assim que este lhe propôs que fosse ter com ele à Suíça, Alexandra considerou. Já que queria uma vida melhor e tinha a experiência de vários amigos que tinham ido trabalhar para o estrangeiro com sucesso, acabou por escolher ir. Mas nem tudo correu como previsto, conta: “Eu já estava mal do coração quando lá cheguei, mas logo no primeiro dia apercebi-me que ele achava que eu não sabia falar francês, porque sempre comunicámos em inglês. Eis então que me diz que tinha de ligar para o trabalho, só que eu conseguia ouvir e apercebi-me que do outro lado estavam a mulher e os filhos”. Como se já não bastasse ter tido desilusões passadas, como a de um namorado que tinha engravidado outra rapariga enquanto estava com Alexandra, a então jovem de 19 anos que se encontrava num outro país, de coração destroçado e inspirada por uma enorme revolta, começou a trabalhar em bares noturnos onde soube da possibilidade de ganhar maiores quantias de dinheiro caso fizesse striptease.
Numa fase de “falta de esperança e de angústia” decidiu então experimentar, sendo assim o seu primeiro contacto com a indústria do sexo : “Costumo sempre dizer, há mil argumentos que se tentam encontrar para explicar o porquê de cada mulher seguir este caminho, mas já conheci centenas de mulheres e garanto que a maioria segue esta vida depois de se depararem com uma série de desilusões com os homens”.
Mas o caso de Karen foi diferente. A jovem brasileira tinha poucas possibilidades e foi uma experiência traumática que a levou para o mundo dos “programas”: “Perdi a virgindade com 23 anos com um ‘carinha’ que eu andava a ver, sentia uma pressão enorme por ser virgem já tão adulta vendo toda gente com a sua vida sexual ativa. Mas depois fui violentada por um outro homem que me engravidou. Eu não tinha nem onde cair morta, quanto mais dinheiro para criar uma criança. Senti vergonha, não contei nada a ninguém e pedi dinheiro emprestado a uma amiga para poder tirar o bebé”.
Karen, conseguiu o dinheiro para o aborto mas depois não tinha como o devolver à amiga. “Percebi logo que ia ter de fazer programa para conseguir devolver o dinheiro e a vida é engraçada sabe? No dia em que ia fazer o meu primeiro programa essa amiga me ligou bem na hora do cara chegar e me disse ‘você está bem? Não queria que se sentisse pressionada com o dinheiro’. Já viu a coincidência?”. A jovem não queria dever dinheiro a ninguém e por isso contactou uma amiga que estava já a exercer a profissão. “Eu estava agoniada sabe? E isto sempre começa com a garota a precisar de dinheiro e claro tem sempre uma amiga que já faz e que nos guia na hora”.
A cultura do descartável
Embora seja conhecida por ser a profissão mais antiga do mundo, Alexandra considera que a procura está a aumentar e é fruto de “uma sociedade consumista, comercial, capitalista em que as pessoas também passaram a ser objetificadas. Criámos uma série de relacionamentos descartáveis onde as pessoas são também tratadas como tal. Se esta pessoa não faz, há quem faça e no meio de uma cultura descartável, em que tudo é de usar e deitar fora, era de prever que também o sexo passasse a ser visto como tal”.
As pessoas, segundo Alexandra, não têm noção do quanto consomem sexo no seu dia-a-dia, desde a publicidade, à ficção, às revistas “os homens, que não foram castrados pela sociedade em relação ao sexo, sempre se sentiram livres e sem necessidade de controlar instintos” explica, “se passam o dia a receber estímulos de todo lado, é de prever o que vem daí”. Karen concorda e a rir diz que a prostituição chega a ser um trabalho social: “O mundo está a viver uma grande crise de depressão, as pessoas acabam por estar muito sozinhas e isto é geral”. Como os homens encaram o caso com uma prostituta como “uma coisa momentânea, eles se abrem, falam o que não têm coragem de falar para outras pessoas, com medo de serem mal vistos”. Karen ri-se e diz que está a brincar quando diz que é um trabalho social mas que “a verdade é que se nós não trabalhássemos e supríssemos as necessidades de muitos destes homens que têm vontades e necessidades que algumas mulheres não têm nem querem, com todo o direito, suprimir, haveria muito mais violência sexual nas ruas porque não teriam a quem recorrer, assim há uma profissional de sexo com quem eles podem contar”.
Reconhecimento da Profissão
“Se a primeira vez que eu entrei numa casa de alterne, quando voltei para Portugal, me tivessem pedido os meus documentos para a elaboração de um contrato, eu se calhar tinha pensado duas vezes”, explica Alexandra que descreve que tudo acontece”debaixo da mesa”, o que leva a crer que “vai ser temporário, que ninguém vai saber da nossa opção, uma pessoa deixa-se ir e claro, passado algum tempo está-se tão habituado à facilidade das grandes quantias de dinheiro (dependendo dos casos), que é difícil desistir e continua-se a adiar”. O facto da profissão ser marginalizada pela sociedade faz com que “não tenhamos acesso a direitos básicos de trabalho, acesso à justiça, à saúde, à dignidade”. Para Karen a independência é tudo: “Eu trabalho com site, sempre trabalho por mim mesma não há cafetão não”. Para ela não há dúvidas: “Com certeza que esta profissão tem de ser reconhecida. Primeiramente eu acho que cada um deve fazer o que bem entender da sua vida desde que não agrida ou não machuque os outros, assim como desde que não se ponha em risco a si próprio”. “Há países em que já é legalizada e eu acho que é uma forma de evitar violência, de evitar que tenhamos que nos esconder da sociedade”. Quanto à criminalização do cliente também não concorda pois “está ali uma pessoa a exercer uma função de livre e espontânea vontade porque é que ele há de ser criminalizado? Uma pessoa precisa de arranjar os dentes, vai ao dentista, precisa de resolver problemas psicológicos vai ao psicólogo, precisa de sexo específico, vai a uma profissional de sexo”.
Do outro lado da mesa
Como é de prever, este é um tema que causa muita discórdia. O assunto divide políticos, organizações, especialistas e até mesmo profissionais do sexo. Precisamente devido à importância e urgência de discussão sobre a realidade dos dias de hoje em Portugal e no mundo, a investigadora do ISCTE Mara Clemente, mobilizou investigadores nacionais e internacionais, entidades ligadas à defesa da igualdade de género, combate ao crime, apoio às pessoas da indústria do sexo, organizando a “primeira grande conferência sobre prostituição e tráfico para a exploração sexual em Portugal” sob o título “Políticas e práticas de gestão da prostituição e do tráfico para a exploração sexual”. O encontro, realizado num dos auditórios do ISCTE, contou com a participação ativa de uma plateia quase sempre cheia. Durante a tarde o debate foi aceso assim que se juntaram na mesma mesa ativistas contra e a favor do reconhecimento da prostituição como uma profissão legal. Mara Clemente explicou a importância de “estarem reunidas no mesmo painel pontos de vista opostos, com a capacidade de discutir de forma respeitável um assunto tão delicado e importante para a sociedade civil”. Presentes na mesma mesa estiveram representantes da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, do Movimento Democrático de Mulheres (MDM), da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), da Associação “O Ninho” e da Agência Piaget para o Desenvolvimento.
Debateram a vitimização, os Direitos Humanos e demais fatores a ter em conta na discussão. Manuela Tavares, da UMAR, explicou que ao longo do tempo a associação foi desenvolvendo uma outra postura ao aperceber-se que “a prostituição não é sempre um caso de violência contra a mulher, porque há quem o faça de livre vontade”, argumento que abolicionistas como Sandra Benfica do MDM não aceitam considerando que “tráfico de pessoas e prostituição são inseparáveis”.
Luca Stevenson, coordenador do Comité Internacional para os Direitos dos Trabalhadores do Sexo na Europa, em entrevista ao i, diz que “o trabalho sexual deve ser tratado como trabalho e os profissionais do sexo têm de ter os mesmos direitos humanos que os outros trabalhadores. A atual criminalização do trabalho sexual afeta negativamente o acesso dos trabalhadores do sexo à justiça, à saúde, à habitação e viola os seus direitos ao trabalho, à associação, à isenção do estigma e da discriminação”. O ativista explica ainda que há que diferenciar trabalho sexual de trabalho forçado, tráfico ou escravidão: “Os profissionais do sexo são pessoas que decidem vender sexo para ganhar a vida. Como em muitas indústrias, como agricultura, construção, trabalho doméstico, há casos de trabalho forçado e tráfico. No entanto, em ambientes descriminalizados, profissionais do sexo e clientes são capazes de confiar nas autoridades para denunciar tais crimes quando confrontados com eles. Muitas profissionais do sexo vendem sexo por causa de oportunidades económicas limitadas. Muitas são mães solteiras, ou mulheres migrantes, ou da comunidade trans. Enquanto mais deve ser feito para que as pessoas tenham mais opções do que trabalhar na indústria do sexo, também precisamos de respeitar as pessoas e criar um ambiente onde quem vende sexo – sejam quais forem suas razões ou motivações – sejam protegidos e tratados como qualquer outro cidadão”.
As defensoras do abolicionismo garantem que em Portugal é possível a qualquer pessoa que se prostitua passar recibos verdes e descontar para a Segurança Social como trabalhadora independente, fazendo com que passe a ser uma falácia a questão da regulamentação. Conceição Mendes da Associação “O Ninho” defendeu que regulamentar a atividade “é regulamentar a violência e dar o poder aos homens de comprar um corpo”, afirmando que prostituição é sempre violência. Segundo a intervenção de Sandra Benfica (MDM), não se pode permitir a mercantilização do corpo da mulher “os países que legalizaram o sistema prostitucional, que significa que legalizaram o consumo, mantêm legislação anti-tráfico(…) mas na Holanda, país onde a prostituição é legal, é o hoje o principal destino de vítimas de tráfico sexual de seres humanos na Europa”.
Segundo Mara Clemente em 2004 Portugal aprovou e retificou a Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional e o Protocolo de Palermo: “Com o Protocolo de Palermo, o tráfico entrou na agenda internacional, principalmente como uma atividade criminosa. O Protocolo dedica pouca atenção aos direitos humanos das pessoas traficadas. Apenas em tempos mais recentes, a Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos prevê a obrigação para as autoridades nacionais de protegerem os direitos humanos das pessoas traficadas” segundo a investigadora “o objetivo da justiça criminal tem encorajado muitos países, incluindo Portugal, a recusarem fornecer proteção e assistência incondicional às pessoas traficadas” completa ainda “o protocolo não intervém sobre o modo como diferentes países lidam com a prostituição. Por outro lado, ainda hoje as políticas de prostituição são uma das poucas áreas em que os Estados não aceitam interferências externas”. Segundo o estudo de Mara Clemente nem todas as prostitutas se vêm como vítimas “o que sugere a investigação empírica é que as pessoas –especialmente mulheres na indústria do sexo – não respondem sempre ou facilmente à ideia de vítima “ideal” produzida no âmbito do debate sobre violência de género”.
A moção aprovada pelo PS, onde o papel de João Torres teve principal relevo, defende que a prostituição deve estar sujeita aos mesmos direitos e deveres que outras profissões. Na votação o primeiro-ministro António Costa foi contra. Em Portugal a prostituição não é crime, mas o lenocínio sim. O crime de lenocínio não pune a própria prática da prostituição, mas sim toda conduta que incentiva, favorece e facilita tal prática, com intenção lucrativa ou profissionalmente.