O caos pode acontecer depois da ordem, e da desordem pode suceder o caos. Federico Rampini vê um mundo complicado em que a história não anda só para a frente.
O seu compatriota Gramsci dizia que, em momentos de grande crise, há a obscuridade, e nesse lusco-fusco aparecem os monstros. Existem muitos monstros hoje?
Existem muitos monstros. O mais recente é o presidente dos EUA, Donald Trump. Mas os populismos nasceram muito antes e até do outro lado do mundo. Digo isto porque trabalhei muito tempo na China. Xi Jinping, muito antes de Trump, fez uma política nacionalista e populista na China.
Agora foi usado como uma espécie de contraponto “pró-globalização” no Fórum Económico de Davos.
É verdade. Mas não se pode esquecer que Xi Jinping é visto na China, pelos chineses, como nacionalista e populista. Depois disso, a nível internacional, ele está a assumir determinados valores e papéis que eram tradicionalmente assumidos pelos EUA. É assim que ele aparece em Davos, como o defensor da globalização. E mais recentemente, apesar de ser de um dos países mais poluidores, assumiu o papel da defesa do ambientalismo e a luta pelos objetivos do combate à mudança climática e ao aquecimento global, inscritos na Conferência de Paris. Mas isso não deve fazer-nos esquecer a natureza profundamente nacionalista da liderança chinesa.
Voltando à questão do caos que aborda no seu livro, a liderança chinesa não é completamente previsível nos seus atos e até no tempo em que realiza os seus objetivos, em comparação com uma presidência de Donald Trump?
É verdade que a China é mais previsível. Os dirigentes chineses têm essa atitude de planificação a longo termo. Isso não quer dizer que sejam capazes de controlar os acontecimentos. Muitas vezes, é mais a impressão que querem dar. A China tem no interior do seu sistema elementos de instabilidade, que estão muitas vezes escondidos, que não se conhecem, porque essa é a natureza de um regime autoritário. No entanto, as fragilidades escondidas do sistema podem provocar crises muito violentas e repentinas. Mas é verdade que, no contexto atual, e perante Donald Trump, a China joga um papel de estabilidade.
No livro discute a definição científica do caos, não como uma total indeterminação, mas como algo que é circunscrito a um conjunto de pré-condições e capaz de produzir outras. Nesse contexto, Trump é produto de alguma coisa ou é um acontecimento fortuito?
Este é o tema central do meu livro: Donald Trump é o produto de acontecimentos que se produziram há muito. A crise da globalização já se dá há bastante tempo.
Esta crise explodiu de uma forma previsível em 2008, com a crise do subprime e dos mercados financeiros. Era evidente há muito tempo. E, quando falo de crise, falo em grande parte do facto de a globalização ter traído todas as suas promessas nas sociedades ocidentais. Não foi uma oportunidade de enriquecimento generalizado e justo, ela aumentou em muito as desigualdades no interior das nossas sociedades. Ao mesmo tempo que as desigualdades entre países do norte e do sul diminuíam, no interior de todos os países, elas cresciam exponencialmente. Isso é um dos aspetos que produziram Donald Trump. O outro é uma certa crise do modelo multiétnico de integração, o que se acentuou com o crescimento do islamismo fundamentalista e o aparecimento do terrorismo a ele associado, que fez mudar a perceção do que é a imigração mesmo em sociedade muito multiétnicas, como é a norte-americana.
Esta situação não tem um certo paralelo com os anos 30 do século passado e com o que se passou com os judeus? É que, em momentos de grande crise social, alguns políticos externalizam o conflito social para “um outro”: o judeu, o negro, o imigrante, o refugiado…
Sim e não. Há muitas analogias com os anos 30, devido à existência de uma forte crise económica que conduz à erupção dos populismos e, depois, dos fascismos nos anos 30. Aliás, faço um pequeno parêntesis: muitos intelectuais americanos redescobrem Mussolini, que foi um personagem muito complexo, socialista no seu começo [diretor do jornal do Partido Socialista Italiano], e redescobrem Gabriele D’Annunzio, precursor do futurismo. Há muitos elementos de hoje, na misturada atual, que se parecem com isso: a crise económica e as desigualdades existentes são dois fatores muito semelhantes entre os dias de hoje e os anos 30. Em relação à questão judia e ao seu paralelo com os dias de hoje, é verdade que há, em momentos de crise, a procura de bodes expiatórios, mas há diferenças fundamentais: os judeus não punham bombas. E o terrorismo islâmico é um facto. Não é uma invenção ocidental.
Você é italiano, e houve muito mais vítimas com o terrorismo negro nos anos 70 e 80, em Itália, do que com o fundamentalismo islâmico.
Sim, e também com o vermelho. Há um intelectual que eu leio com muito interesse, Olivier Roy, que faz muitas vezes um paralelismo entre o terrorismo fundamentalista e as Brigadas Vermelhas, porque é o mesmo género de perversão de uma ideologia muito difundida nas massas. Tem o islão, com mais de 1600 milhões de fiéis, e depois tem o fundamentalismo religioso, e depois tem os terroristas jihadistas. O que é importante perceber é que há uma ligação entre o jihadismo, o fundamentalismo e o islão. Eu fui comunista e membro do PCI, e compreendemos que as Brigadas Vermelhas vinham da nossa família. Houve uma tendência de uma certa neutralidade, dizendo que não estamos nem com o Estado, nem com a polícia, nem com os terroristas. Ou havia a tendência de dizer que estes são falsos esquerdistas, fazem o jogo dos fascistas. Mas não, a história das Brigadas Vermelhas foi uma parte da nossa história [da esquerda comunista italiana] e era necessária combatê-la com a força das nossas ideias, explicando a nossa adesão séria à democracia. Isso foi uma batalha que demorou mais de 20 anos ao Partido Comunista Italiano. E isso custou, durante esse tempo, muitas vidas de magistrados e polícias que foram assassinados pelas Brigadas Vermelhas.
É possível compreender as Brigadas Vermelhas sem as colocar no contexto histórico de se seguirem ao terrorismo negro? É possível compreender a eclosão do terrorismo fundamentalista islâmico sem ver o desaparecimento dos Estados laicos do Iraque, Líbia e Síria pela ação dos mísseis ocidentais e sem analisar o crescimento do salafismo pago e suportado pela Arábia Saudita?
Um dos temas do meu livro “A Era do Caos” é que a História pode andar para trás. Isto aconteceu muitas vezes. Houve um momento em que dominava uma ideologia teleológica da História em que o progresso era obrigatório e a História marchava sempre para melhor. Mas verificamos que há momentos em que esse progresso para. E voltamos para trás. Um dos grandes exemplos disso é o Império Romano. Quando ele cai, são precisos séculos para que a Itália e toda a Europa consigam atingir o nível de vida que tinham durante o Império Romano.
Dai o paralelo que faz entre a Idade Média e o caos.
Sim. É preciso chegar à Paz de Vestefália ou ao Congresso de Viena para termos uma certa regulação das relações internacionais, depois de séculos de guerras. Sobre o islão, estou completamente de acordo com a sua pergunta: muitos países islâmicos e árabes regrediram em relação, por exemplo, aos direitos das mulheres. O direito das mulheres, nessa zona do mundo, era muito melhor nos anos 60 e 70 do que é hoje.
Mas para explicar o aparecimento de Trump não é preciso falar, para além do falhanço das promessas da globalização e da erupção do terrorismo islâmico, do falhanço da democracia?
Eu falo disso quando me debruço sobre a obra de Francis Fukuyama, ele que foi, na minha opinião, o último pensador com uma visão teleológica da História, quando defende, no seu “Fim da História”, que só restava no mundo um único modelo económico e político: o capitalismo associado à democracia liberal. É a ideia de que se chega ao fim da História e que todo o futuro possível começou. E, a partir daí, foi tudo ao contrário que sucedeu: houve uma implosão económica e política. Estamos numa profunda crise de confiança da democracia de modelo ocidental. Em todo o lado há sinais de que um número crescente dos ocidentais não acreditam verdadeiramente no valor da democracia. Na Europa ocidental fazem-se sondagens para ver a popularidade de Vladimir Putin e percebe-se que ele está a tornar-se cada vez mais popular. Há uma crescente inclinação para o homem forte, o líder providencial, a solução fácil. Há a convicção de que este tipo de soluções autoritárias nos permitem combater melhor o terrorismo. Não é verdade, e os atentados recentes em Sampetersburgo mostram–nos isso. E se os atentados acontecem na Rússia, também acontecem na China, por muito que nós não tomemos conhecimento deles. Mas há atentados terroristas em zonas de maioria muçulmana da China. Há esta ideia de que as nossas democracias são fracas, Marine Le Pen, de um lado, e Victor Orbán [primeiro-ministro da Hungria] não se cansam de o repetir. O autoritarismo ganha popularidade nas nossas sociedades.
Não se pode dizer que o problema da crise da democracia é anterior, quando se passa para o controlo supranacional e tecnocrático de grande parte das decisões democráticas? Há uma crise na escolha democrática. Pode-se votar, mas não se pode decidir.
É um tema que está no livro. Uma das razões por que a confiança das populações, em relação aos seus governos e à União Europeia, caiu a pique são as políticas de austeridade. Essas políticas foram destrutivas e desastrosas. Foram muito contestadas, desde o presidente dos EUA Barack Obama até prémios Nobel da Economia, como Paul Krugman, Joseph Stiglitz e Amartya Sen. Foi absolutamente evidente que a austeridade foi um falhanço, isso apesar de o dogmatismo alemão e dos tecnocratas europeus persistir em continuar essa via para o desastre. Acho interessante que Portugal recentemente tenha experimentado ter uma via própria para tentar escapar à austeridade. É um esforço recente, mas é muito interessante.
E é um esforço feito no meio dos limites impostos pela União Europeia.
Mas é um esforço, apesar disso, muito interessante. A austeridade é um falhanço total, e é, mais do que isso, um falhanço previsível: a crise dos anos 30 tinha–nos ensinado isso. Sobretudo com o contributo de John Maynard Keynes, que nos mostrou que num momento de depressão não se pode fazer austeridade.
Sim, não se deve fazer políticas pró-ciclo. Mas, provavelmente, a austeridade não foi feita só, ou sobretudo, por razões económicas – ela permitiu reforçar o poder da Alemanha na UE. Qual a razão por que, por exemplo, os países mediterrâneos, como Itália, França, Grécia, Espanha e Portugal, que foram muito prejudicados por essas políticas, não tentaram contrariá-las de uma forma coletiva?
Nunca o fizeram, mas também nunca o tentaram verdadeiramente. Para fazer este campo político, de uma forma eficiente, era preciso a colaboração e empenho da França. E os franceses sempre privilegiaram o eixo franco-alemão. Nunca houve uma estratégia alternativa à política alemã, porque Paris foi cúmplice dela. E houve também a falta de uma ideologia forte alternativa nesses países, um novo pensamento que fosse hegemónico e capaz de se opor ao ordoliberalismo alemão. E houve uma ilusão das nossas elites de que se podia modernizar os nossos países seguindo os interesses da economia alemã. As nossas elites, dos países do sul, acharam que a via da modernização passava pelo modelo alemão. E esse modelo não é generalizável. A Alemanha tem a necessidade de acumular excedentes permanentes e isso dá origem a que, em torno dela, haja muitos países que sejam deficitários.
Mas isso, a médio prazo, não pode ser destrutivo para os próprios alemães?
Eles estão a acumular uma série de erros e arriscam-se a promover a destruição da própria UE, o que será também muito negativo para eles. E voltando à questão da ausência de uma contraestratégia dos países do sul da Europa, houve certas elites, como as italianas, que ficaram convencidas de que, seguindo o modelo alemão, iam contrariar e corrigir certos defeitos existentes nos seus países, como a corrupção, uma burocracia ineficaz, o desperdício dos recursos públicos. Isso não funcionou: temos ainda muita corrupção em Itália, apesar da austeridade. A austeridade cortou, por todo o lado, as despesas públicas e os apoios sociais, mas a corrupção continua de boa saúde. Era uma ilusão.
Uma coisa interessante em Itália – depois de ter dito que, para haver uma alternativa, era necessária uma ideologia alternativa – é que não há quase esquerda em Itália. É um fenómeno local ou uma tendência mundial?
É geral. Não há esquerda em Itália, mas quase não existe em França [a entrevista foi feita antes da subida de Mélenchon nas sondagens], François Hollande não ousa reapresentar a sua candidatura, tal o desastre completo da esquerda; Macron pode chegar a presidente porque separou o seu destino político do governo a que pertenceu e da esquerda. A esquerda está em crise no Reino Unido, o referendo foi uma confusão total para os trabalhistas: o partido disse que eram pelo remain no referendo, e os seus eleitores votaram pelo Brexit. Foi uma enorme derrota. A esquerda na Alemanha, vamos ver. Não estou nada convencido das sondagens que dão um bom resultado a Martin Schulz. E nos EUA está em crise.
Mesmo com Bernie Sanders?
Sim, Bernie Sanders é um fenómeno contrário, mas não foi suficiente para ganhar a nomeação. E o Partido Democrático está em estado de choque. Há divisões profundas que são camufladas dizendo: “Somos todos contra Trump.”. Naturalmente que são todos contra ele. Mas não é suficiente para ter uma estratégia. Dizer que Trump é um diabo e um horror, até pode ser verdade, mas não faz uma estratégia alternativa.
Nos únicos países em que sobe, a esquerda é nacional-populista: como o caso do Sinn Fein e do Podemos.
O que é interessante, é um dos pontos de partida do meu trabalho, e também aí eu cito Fukuyama, na ideia de que “Dinamarca já não quer ser a Dinamarca”, e uma certa crise do modelo nórdico como um dos modelos mais avançados do ponto de vista de uma social-democracia realizada, com um Estado social inclusivo e generoso. E vemos que também há problemas, e que eles derivam de uma reação à imigração. A razão por que os escandinavos duvidam do seu próprio modelo é devido à imigração.
Isso é só devido ao terrorismo?
Não. Tenho estudado muito as questões e os problemas que levanta a imigração. Acho que a imigração muçulmana criou uma diferença porque, num certo momento do desenvolvimento do islamismo, eles deixaram de querer integrar-se. Pensam, quando vivem nas nossas sociedades, que elas são moralmente inferiores. Por isso devem tomar distância em relação aos valores do Ocidente e evitar serem contaminados. Isso é novo. A imigração portuguesa e italiana nos anos 60/70 tinha gente que queria integrar-se. As pessoas tinham interesse em integrar-se. Isso acontecia da mesma maneira em relação aos árabes e norte-africanos nos anos 60. A partir do final dos anos 70, as coisas começam a mudar: há a revolução islâmica no Irão, há coisas que começam a dar uma outra narrativa no mundo islâmico – isso acompanhado do falhanço das elites dirigentes, muitas vezes modernistas e de esquerda, no mundo árabe, Nasser, Kadhafi, e o socialismo argelino, que foram desastres totais. A certa altura, essas classes dirigentes começaram a alimentar um discurso da culpa exterior: todos os falhanços passaram a ser da responsabilidade do Ocidente. E voltam-se para o salafismo e começam a importar os religiosos da Arábia Saudita. Isso mudou a relação entre os muçulmanos e o Ocidente, mesmo entre os muçulmanos moderados e não violentos, que não têm a ver com o terrorismo, mas que pensam que todos os problemas são da responsabilidade do Ocidente e da sua cultura. Isso criou enormes dificuldades de relacionamento com essas comunidades. Os turcos na Alemanha mudaram de atitude. Nos países escandinavos, que eram admiráveis no seu esforço de integração, verificaram que a certa altura havia comunidades que não tinham essa vontade. E isso criou um choque. Naturalmente, houve políticos oportunistas que fizeram sucesso a promover a xenofobia e os preconceitos, mas a situação não é só culpa dos racistas, há qualquer coisa que mudou na natureza da imigração.
O nacional-populismo é também uma reação ao sentimento de falta de soberania?
Sim, é uma reação a uma certa impotência e falta de controlo sobre o futuro que sentem as populações. É a ideia de que, se tudo retorna a uma unidade mais reduzida e se construirmos muros, vamos voltar a ser senhores do nosso destino. É provavelmente ilusório. Mas neste momento é o que dá um sentimento de segurança. Conseguir uma unidade política numa comunidade em que estamos mais próximos uns dos outros parece ser mais seguro. Mas é muito contraditório. Penso que, na Europa, a geração Erasmus está de tal forma habituada a viajar que a ideia de fechar as fronteiras e que, por exemplo, um português não possa mais estudar no Reino Unido é absurda. Ao mesmo tempo, os jovens são aqueles que normalmente não votam. No Reino Unido, se os jovens tivessem votado, o Brexit tinha perdido.
Em França, segundo as sondagens, muitos jovens votam na Frente Nacional ou na Frente de Esquerda, ambas antieuropeístas.
Essa é a exceção francesa. Nos EUA, os jovens não votaram Donald Trump, no Reino Unido não votaram Brexit. A grande exceção é a popularidade de Marine Le Pen. No resto da Europa há uma parte dos jovens que é muito cosmopolita e não vai votar.
Acresce que, se descontarmos os imigrantes, a pirâmide etária na Europa está muito envelhecida. Pensa que, nesta espécie de Idade Média em que vivemos, aparecerá uma nova ideia e formas novas de ideologia que possam construir uma alternativa?
Há já tendência para ver que a democracia pode ganhar com novas tendências tecnológicas. No meu país, Itália, a ideia de democracia que tem o Movimento Cinco Estrelas, de Beppe Grillo, é a internet. Eu penso que a internet é uma nova forma de totalitarismo. A nível de linguagem, aquilo que se verifica nas redes sociais parece-se muito com algumas coisas previstas por Orwell no seu “1984”. Sempre houve uma tendência de esquerda muito adepta da tecnologia, muito Silicon Valley. Tipo aqueles que diziam que, com a internet, é inevitável que a China se democratizasse. Pelo contrário, acho que a China, Irão, Rússia são a prova de que podemos renacionalizar a internet e controlá-la. Assusta-me quando vejo essas teorias tecnológicas da democracia. Mas é verdade que temos de dar credibilidade à democracia e voltar a dar-lhe força.