Património. Uma bicicleta, 11 quilómetros e mil histórias sobre Lisboa

O i fez-se à ciclovia para um tour criado para mostrar as transformações da cidade à beira-rio. É por isso que nunca deixamos de ter água na margem esquerda deste passeio que começa em Santa Apolónia e termina em Belém  

Habituado a levar turistas a conhecer Lisboa, Luís Maio teve apenas de trocar o estímulo dado às pernas, habituadas a calcorrear a cidade. Em vez de subir e descer colinas a pé, hoje é dia de pegar na bicicleta e seguir a direito, sempre ao lado do Tejo.

O percurso, criado pela Europcar para assinalar o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, foi pensado de forma a mostrar as transformações de Lisboa à beira-rio. “O rio serve como uma espécie de fio condutor”, explica, justificando o porquê de o percurso começar em Santa Apolónia. “É o sentido natural, até porque o crescimento de Lisboa se fez do rio para o mar”, acrescenta. Sabemos, por isso, que o tour terá como ponto final Belém, onde o Tejo já está mais perto de ser mar e onde os 11 quilómetros são suficientes para aquecer uma manhã já por si de 30 graus.

 

Santa Apolónia – Km 0

Ainda não arrancamos e já há motivos para parar. “Esta é a zona de entrada e saída de Lisboa”, explica Luís, apontando para a porta principal da estação, de onde saem dezenas de pessoas, fazendo adivinhar a chegada de um longo-curso. Este é um cenário que poderia servir de resposta à contestação inicial que a estação provocou. “Ninguém apoiou a sua criação por ser longe do centro da cidade.” É certo que o Rossio trouxe o comboio ao centro e a Expo 98 expandiu os carris a oriente mas, ainda hoje, são 150 os comboios que todos os dias passam por aqui.

Chafariz D’El-Rei – 800 metros

Se agora não se vê uma pinga a cair, houve tempos em que a água no Chafariz D’El-Rei saía de seis torneiras, bem divididas por extratos sociais. Da esquerda para a direita, a ordem era: escravos, “mouros” que chegavam de barco, homens brancos, mulheres brancas, escravas e raparigas brancas.

A cal já gasta daquela que é considerada a fonte mais antiga da cidade é ofuscada pelos vitrais do palacete construído logo por trás. “E se agora é um espaço de luxo, quando foi construído era considerado pela elite como o edifício mais feio de Lisboa”, refere Luís, justificando o “confronto entre passado, presente e futuro” que garantiu estar presente em toda a viagem.

Terreiro do Paço – Km 1

Os 500 metros que nos separam do Terreiro do Paço – paragem seguinte – funcionam quase como uma gincana entre estradas em obras e passeios cheios de turistas. Mal sabem eles que, não há muito tempo, a praça que agora é perfeita para selfies à beira-rio não convidava ninguém a ficar. “Lembram-se do mau cheiro que havia aqui?”, pergunta Luís. Com um passado recente pouco feliz, voltemos a uma história cheia de curiosidades. “Foi D. Manuel i que decidiu trazer o paço real para a zona ribeirinha”, conta o anfitrião deste passeio. Daqui, o rei podia controlar toda uma Lisboa, onde tudo acontecia à beira-rio. “Era ver rinocerontes, elefantes, cavalos persas a chegar todos os dias”, explica, lembrando uma cidade considerada a mais exótica da Europa.

Ribeira das Naus – Km 2

O edifício cor-de-rosa que serve de traseiras ao relvado que várias pessoas transformam em areal de praia servia, até 1938, para construir embarcações. “A última que saiu daqui”, refere Luís, “era uma espécie de ‘barco internet’”. Isto porque, pelas dimensões pequenas, servia de ligação entre os grandes barcos quando estavam no alto-mar.

Avançando na história até 74, Luís conta ainda que foi aqui que, no 25 de Abril, os militares estiveram frente a frente, dentro de tanques, com o dedo no gatilho, decidindo, no entanto, não disparar contra a coluna de Salgueiro Maia.

Santos – Km 3

A viagem continua, mas a história não fica parada. O caminho passa por estátuas de Almada Negreiros e por poemas de Alberto Caeiro pintados no chão.

A arte que hoje pinta o Cais do Sodré transporta para bem longe as referências que Luís faz questão de lembrar. Afinal, o alcatrão que serve de base ao passeio até Santos já foi, noutros tempos, nada mais do que praias lamacentas para onde era atirada toda a porcaria da cidade, literalmente. “À falta de saneamento, eram as escravas que iam a casa das pessoas recolher os dejetos para despejar no rio. Isto na melhor das hipóteses”. Na pior, tudo o que transportavam nos alguidares ia caindo pela cidade. 

A conversa já começa a cheirar mal. Avancemos.

Alcântara – Km 5

Aqui dá-se o primeiro esticão a pedalar até chegar ao quilómetro cinco do passeio e a outra das zonas de entrada e saída de Lisboa.

Na Doca de Santo Amaro, Luís lembra que, antes de uma avenida dedicada a bares e restaurantes, e onde as bicicletas têm de ser levadas à mão, toda aquela zona era dedicada ao setor fabril. “Para ser mais preciso, aqui havia 25 fábricas que empregavam 1200 homens, 800 mulheres e 400 menores.”

Palácio de Belém – Km 8

Continua a ter algum gabarito, mas no século xvii não havia problemas em falar de Belém como a “zona chique” da cidade.

As grandes moradias serviam de albergue a quem queria aproveitar a praia da Junqueira, “que na verdade estava cheia da imundície de Alcântara”, lembra Luís. Também D. João v decidiu ignorar a falta de saneamento e mandou construir aqui um palácio para passar os meses quentes e que, mais tarde, se converte em residência oficial do rei e, mais tarde ainda, na dos presidentes. “Sempre que o Marcelo está em casa levanta-se uma bandeira verde”, revela. Talvez as rotinas aceleradas do Presidente da República justifiquem a ausência de bandeira ao alto à nossa passagem.

Padrão dos Descobrimentos – Km 11

Da Exposição do Mundo Português – “uma espécie de Disneylândia dos monumentos portugueses”, como se refere Luís a este projeto concretizado por Salazar – apenas restam três pavilhões: o clube náutico, o Espelho de Água e o Museu de Arte Popular. Isto se não contarmos com o Padrão dos Descobrimentos, claro.

Aquilo que serve para lembrar a expansão ultramarina portuguesa foi erguido pela primeira vez em 1940, de forma efémera, só para a exposição. Só em 1960 é que Salazar, por ocasião da comemoração dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique, decide reconstruir o monumento, desta vez em betão.

Com o cérebro cheio de história e as pernas a pedir descanso, está na hora de pôr a bicicleta no descanso e aproveitar Belém como zona de veraneio – mesmo que ainda em Abril – e, imagine-se, sem esgotos ao ar livre.