Nunca tanto se ouviu ladrar pelos corredores do campeonato… Estranho mundo este no qual o futebol português se transformou. Palavras, palavras, palavras (“parole, parole, parole”, cantariam Mina e Lupo, ou Dalida, ou Adriano Celentano, tantas são as versões), palavras em barda, cuspidas, vomitadas, tão poucas faladas. Qualquer pé-rapado debita sentenças, profere opiniões, lança-se em diatribes. Gente que é pouco mais atenta do que a Grã- -fina de Narinas de Cadáver de Nelson Rodrigues. Aquela que entrava num Maracanã cheio de gente, com alguns até pendurados nos holofotes, e perguntava candidamente: “Qual deles é a bola?”
Hoje em dia não é preciso saber “quem é a bola” para se falar sobre ela. Médicos, advogados, professores, padres, mecânicos de automóveis e agentes funerários: todos soltam o seu bitaite e enchem as páginas de jornais, frequentemente mais bem pagos por essas insanidades do que nas suas próprias profissões. Que trouxeram nestes últimos dez anos, para não recuar mais no tempo, que justifique o dispêndio de dinheiro e de espaço? Nada! Raros, raríssimos, têm uma noção básica de ortografia e sintaxe. Mais raríssimos ainda são os que não destilam ódios clubistas, bacocos e mazombos ao nível da tasca da esquina onde o pastel de bacalhau e o respetivo palito boiam no excesso do óleo mil vezes usado.
É a realidade, dirão alguns, encolhendo os ombros, resignados a esta porcaria opinativa que se espalhou por toda a parte como um surto de gripe espanhola ou, mais convenientemente, febre porcina. A nós, aos outros, resta a suprema liberdade de não ler nem ouvir, para bem da sanidade mental. “Sic transit gloria mundi”, diziam os romanos de antanho. Mas a glória é cada vez mais escassa…
A caravana
Por entre os latidos, deixemos passar a caravana do campeonato. Uma caravana que se mexe bem mais velozmente do que aquelas dos westerns spaghetti de Sergio Leone, a mais a harmónica arrepiante de Ennio Morricone. Afinal, a partir deste fim de semana ficaremos a apenas três jornadas do fim da prova, quem diria?, parece que ainda ontem começou…
Que a luta pelo título, entre Benfica e FC Porto, tem ocupado a quase totalidade das discussões, não é novidade para ninguém. Que as últimas jornadas tiveram o seu quê de escaldante, também é algo de absolutamente indesmentível. E que ambos os contendores se têm aferrado a cálculos de ábaco na mão, todos nós sabemos.
Não é certamente por acaso que os pontos perdidos começaram a ser riscados no quadro de lousa negra com tracinhos de prisioneiro que conta os dias para a liberdade. Repare-se: o FC Porto, que amanhã à noite vai a Chaves, numa daquelas saídas chatas como a potassa, se me é permitida a expressão popularucha que se repete de Unhais da Serra a São João de Negrilhos, está metido na camisa de onze varas de ter concedido nada mais nada menos do que quatro empates nas últimas cinco jornadas. É de escacha! Oito pontos deitados pela janela estreita das oportunidades. Claro que houve o empate da Luz, comemorado como se de uma vitória se tratasse, tal era a fé que o dragão tinha no leão, talvez porque, como gostava de dizer o Guimarães Rosa, “pão ou pães é uma questão de opiniães”. Apostou forte Nuno Espírito Santo – que talvez venha a ser ingratamente tratado, como tantos outros que resolveram adotar uma filosofia de urbanidade num clube reconhecidamente virado para o confronto – na derrota do Benfica em Alvalade. Só que, mais uma vez, os encarnados foram ao outro lado da Segunda Circular não perder – coisa costumeira, aliás. E, por seu lado, o dragão deitou mais fumo do que fogo: empates caseiros com Vitória de Setúbal e Feirense (1-1 e 0-0) e em Braga (1-1). Condenou-se? Não o direi de forma tão concreta. Mas se, no final do jogo em Alvalade, o Benfica saiu com a vantagem de poder continuar isolado na frente, agora tem a vantagem ainda maior de se poder dar ao luxo de um empate nas três jornadas que sobram.
Memória
Recebendo o Estoril, do qual tem a péssima memória de 2013 – 1-1 em casa, antes de ir às Antas, condenou Jesus ao pontapé felizardo de Kelvin, com o ajoelhamento espontâneo e o que mais se está para saber –, não é altura para tremeliques. Convenhamos que este Benfica não é entusiasmante por aí além, resume-se muitas vezes ao mínimo indispensável, mas tem errado menos do que os adversários e, assim sendo, caminha na frente, de peito erguido, na esperança cada vez mais forte de, pela primeira vez, ir registar quatro títulos consecutivos de campeão nacional. Batendo os canarinhos ao final da tarde de amanhã, pode regalar-se com o espetáculo noturno que vai ter lugar para lá do Marão. Com a liderança segura por mais uma semana. É que, à medida que o tempo passa, menos engulhos vão surgindo no caminho já de si pedregoso do campeonato.