Donald Trump mudou mais a presidência americana do que o contrário. Julgando pela sua campanha, não há causa para surpresa. O magnata nunca obedeceu às expectativas tradicionais sobre a forma como o candidato de um dos dois partidos se deve comportar, sobre quantas vezes pode mudar de posição sobre um assunto ou simplesmente dizer a verdade. Não obedeceu então e continua sem o fazer hoje. Trump gere a sua presidência em termos transacionais: escolhe a via mais popular e que melhor imagem sua transmite ao público e aos meios de comunicação americanos, a quem atribui ao mesmo tempo o papel de vilão e de barómetro ideológico. “O anti-político transformou-se no anti-presidente”, resume o correspondente da BBC em Nova Iorque, Nick Bryant.
Donald Trump celebra amanhã os primeiros cem dias da sua presidência como o outsider que não quer deixar de ser. Em vez do tradicional jantar com os jornalistas correspondentes na Casa Branca, o líder americano vai organizar um novo comício para “tornar a América grande outra vez”, longe do “pântano” e dos centros de poder de Washington que promete “drenar”. O marco é quase arbitrário e Trump vem-se queixando disso. Mas é consensualmente importante: na política americana serve como patamar para avaliar a liderança de um novo presidente e a sua capacidade de cumprir as promessas de campanha. E a avaliação, embora não sendo o cataclismo que muitos esperavam, está longe de positiva.
Promessas falhadas
Com a exceção de ter nomeado um novo juiz conservador para o Supremo – um feito quase sem obstáculos, levando em conta a maioria republicana no Congresso – Trump falhou todas as grandes promessas eleitorais. Umas abandonou, outras adiou e, nas restantes, viu-se travado pelo Congresso ou tribunais. A ordem com que tentou proibir a entrada no país a cidadãos de vários países de maioria muçulmana foi suspensa não uma, mas duas vezes (mesmo uma sua versão mais branda). A tentativa de reformar o sistema de saúde de Barack Obama não reuniu apoio suficiente da ala mais conservadora dos republicanos no Congresso e Trump retirou-a antes que pudesse ser chumbada. O grande muro que quer construir na fronteira com dinheiro mexicano foi adiado esta semana, sob ameaça de o Congresso não aprovar fundos para o governo. A NATO passou de “datada” a importante.
Mas Trump não esteve de braços cruzados. O novo presidente assinou mais decretos do que qualquer outro líder desde Truman, sobretudo desfazendo as regulações financeiras e climáticas impostas por Obama, restituindo regras para a compra de armas, retirando o país do acordo de livre-comércio do Pacífico, por exemplo, ou apertando as leis que regulam as atividades de lobby em nome de outros governos. Muitos destes documentos, porém, são simples anulações de medidas de Obama, que exigem pouca ou nenhuma colaboração com o Congresso. E esta face da administração Trump tem sido praticamente ignorada perante um pano de fundo que inclui uma boa dose de guerra interna na administração, suspeitas de que responsáveis da sua campanha possam ter estado em contacto com os serviços russos que interferiram nas eleições e um governo em luta com a realidade – 70% do que Trump disse desde que tomou posse foi avaliado como “falso”, “sobretudo falso” ou “gritantemente falso” pelo independente Politifact.
Força Americana
Trump não envelheceu bem nestes primeiros cem dias. Continua a ser o presidente com a mais baixa taxa de aprovação de que há registo – ronda os 40%, quando, por esta altura, Obama registava 65% e George W. Bush 56%. A sua mais importante agenda política está por realizar, a doutrina por definir e grandes partes do governo por nomear. Mas nem tudo é fracasso. Os mercados financeiros batem recordes e o clima de confiança entre os investidores também, sobretudo impulsionados pela expectativa de desregulação. Os apoiantes de Trump não dão mostras de desertar – a escolha de um juiz ultra-conservador para o Supremo e o estilo agressivo agradam-lhes – e, de uma forma ou de outra, apoiar Le Pen nas eleições francesas e o presidente turco no seu referendo de concentração de poder deixou de ser um tema de polémica nacional. A sua presidência, aparentemente distópica, a início, está em vias de se normalizar.
O inesperado e recente sucesso na política externa pode ajudar tanto como pode revelar-se um presente envenenado. O mesmo Donald Trump que passou a campanha sem praticamente criticar o governo russo de Vladimir Putin, recomendando uma aliança entre ambos para derrotar o grupo Estado Islâmico e repetindo ad nauseam que a única guerra que o interessava era comercial, e com a China, disparou dezenas de mísseis contra a base aérea do regime sírio que parece ter sido usada para lançar um ataque com gás sarin contra uma zona residencial rebelde. Ao fazê-lo, o presidente americano forçou o regime de Bashsar al-Assad a um passo atrás. Parece ter sido pouco e demasiado tarde para retirar o fôlego ao regime e seus aliados, mas Trump conseguiu ser consensualmente aplaudido por democratas, republicanos e aliados no estrangeiro, desagradados há muito com o zelo com que Obama encarava o poder militar americano. Só os seus apoiantes de linha dura protestaram contra a decisão de Trump bombardear o regime sírio, acusando-o de abandonar a promessa de concentrar os esforços no próprio país.
Futuro e guerra
Não é sem alguma surpresa que Trump chega ao fim dos seus primeiros cem dias com os olhos voltados tanto para as próximas batalhas no Congresso – a saber: a reforma do sistema tributário e uma nova tentativa de revogar a lei de saúde de Obama – e para as manobras militares em Pyongyang. O impulsivo Trump que se gaba de tomar posições inesperadas de força vê-se agora forçado a encarar um ditador norte-coreano que tem a mesma fama. O círculo militar americano a quem o novo presidente entregou uma parte importante das decisões diplomáticas quer tudo menos uma guerra com a Coreia do Norte e diz que não há solução para além da diplomacia. O anti-presidente pode discordar.