Marine Le Pen até ficou ligeiramente atrás das previsões sugeridas pelas sondagens, na primeira etapa da corrida ao Palácio do Eliseu, realizada no passado domingo, mas cumpriu aquilo a que se propôs: o melhor resultado de sempre de um candidato da Frente Nacional (FN) numas eleições presidenciais em França e, mais importante que isso, a passagem à segunda e decisiva ronda da contenda, agendada para o próximo dia 7 de maio, contra o independente Emmanuel Macron.
Dois feitos inéditos, pois claro, mas que mereceram críticas de um dos principais rostos da extrema-direita francesa. Numa entrevista à radio francesa RTL, Jean-Marie Le Pen, pai da candidata presidencial e fundador da FN, lamentou a postura «demasiado descontraída» da filha e garantiu que se tivesse no seu lugar teria feito uma campanha «mais aberta e muito mais agressiva» contra os «responsáveis pela decadência» de França. «Ao estilo de Trump!», sintetizou o homem que, 15 anos antes, conseguira a proeza de bater o socialista Lionel Jospin e alcançar a segunda volta – para depois ser esmagado pelo pacto ‘republicano’ que se uniu em torno de Jacques Chirac.
As divergências dentro do clã Le Pen não são novidade e é, talvez, através delas que se explica muito do sucesso da filha mais velha de Jean-Marie nas eleições para o Parlamento Europeu, de 2014, nas regionais do ano seguinte, ou da primeira volta das presidenciais do passado fim de semana. A (tentativa de) expulsão do pai Le Pen do partido, foi talvez o mais forçoso passo dado por Marine, na árdua missão de ‘desdiabolização’ do mesmo, assente no expurgo dos seus elementos transparentemente racistas, xenófobos, fascistas ou antissemitas, e orientada para a transformação da FN numa organização política suficientemente suportada por uma máquina partidária robusta e por um eleitorado com representação nacional.
Os conselhos de Jean-Marie – para quem o Holocausto não passou de um «mero detalhe» na História da Segunda Guerra Mundial – podem até ter sido genuínos e bem fundamentados. Afinal, foi a própria Marine Le Pen que, no dia seguinte à vitória eleitoral do magnata norte-americano nas presidenciais dos Estados Unidos, rejubilou com um feito que «tornou possível o impossível». Mas a verdade é que, uma semana depois de lograr 7,5 milhões de votos, equivalentes a 21,3% do total da votação, a candidata subiu ainda mais a fasquia, na sua estratégia de suavização da aura de radicalismo que anda de braço dado com o seu partido e da defesa pública de alguns temas mais polémicos da sua campanha.
A razão? Há uma presidência para conquistar e as sondagens colocam Le Pen com larga desvantagem para Macron – cerca de 40% das intenções de voto, contra 60% do centrista –, com a agravante de a grande maioria dos candidatos derrotados na primeira volta, como François Fillon ou Benoît Hamon, ter pedido aos seus apoiantes, desde a primeira hora, para transferirem o seu apoio para o antigo ministro de François Hollande – outra figura da embaraçada família socialista francesa que defendeu o voto em Macron.
Os votos em disputa
Ao mesmo tempo, porém, um Jean-Luc Mélenchon saído da primeira volta como o representante mais votado da esquerda francesa (19,6%), abdicou de oportunidade de sugerir aos seus eleitores uma orientação de voto na decisiva ronda. «Cada um sabe, na sua consciência, qual é o seu dever», limitou-se a dizer o candidato apoiado pela Front de Gauche, numa altura em que o seu movimento promovia um referendo online, no qual questionava os seus seguidores sobre qual deveria ser a posição da France Insoumise na segunda volta, entre uma das seguintes hipóteses: Macron, voto nulo ou abstenção. Le Pen não conta, portanto.
Lançados os dados (e os apoios), há então que fazer contas e perceber qual o eleitorado a conquistar. Segundo o estudo diário Fiducial/IFOP, 90% dos eleitores que revelaram querer votar em Macron estão seguros da sua escolha e 84% dos que estão inclinados para Le Pen partilham de convicção semelhante, pelo que, ‘garantida’ a confiança do seu eleitorado, os dois candidatos terão de olhar para fora do seu círculo. Uma outra sondagem, do Harris Interactive refere que 47% dos que escolheram Fillon e 52% dos que apostaram em Mélenchon, vão apontar para Macron no dia 7 de maio, números que sugerem a existência de uma boa dose de eleitores indecisos nestas duas candidaturas. Significa isto que, do ponto de vista de Le Pen, os votos a angariar encontram-se, em três principais eixos: extrema-esquerda; ala mais conservadora d’Os Republicanos; e abstenção.
Um apelido incómodo e uma Europa «colorida»
A primeira resolução de Le Pen, com vista à missão de desagrilhoamento da ala mais radical da sua candidatura e à operação de charme ao restante eleitorado foi a de abandonar a liderança da FN. Menos de 24 horas depois de conhecidos os dois concorrentes finais ao Eliseu, Le Pen anunciou a intenção de dispensar a conotação partidária associada à sua figura e prometeu concorrer como aspirante a «Presidente de todos os franceses».
O segundo passo foi menos evidente, mas igualmente significativo. Nos novos cartazes e panfletos de apelo ao voto em Marine Le Pen, distribuídos e afixados por essa França fora, a candidata à presidência deixou cair o seu apelido e, com ele, mais um pouco da embaraçosa ‘presença’ do pai. «Escolha a França» e vote «Marine», é o novo apelo da sua candidatura.
Para além das saídas de cena do partido e do apelido ‘amaldiçoado’, Marine optou igualmente por suavizar um discurso que tem sido, até aqui, agressivo, disruptivo e provocador, e que, de acordo com declarações anteriores da própria candidatada, é o mais indicado para o debate entre as duas forças antagónicas em confronto nesta eleição: «Patriotas e globalistas».
Num comício realizado na passada quinta-feira em Nice – uma cidade ganha por Fillon e com uma enorme representatividade de eleitores conservadores – Le Pen não abdicou de falar em temas que lhe são próximos, como a imigração, a segurança ou a ameaça do islão – até porque falava para uma plateia de apoiantes que, em julho do ano passado, testemunhou a morte de 86 pessoas, atropeladas por um simpatizante do grupo terrorista Estado Islâmico, numa das principais artérias de Nice –, mas mudou radicalmente o seu discurso sobre a União Europeia.
Consciente de que as suas promessas de fazer um referendo à Europa e de regressar à moeda antiga não são propriamente populares junto de uma franja considerável de votantes à direita, a candidata apresentou uma versão alternativa aos seus planos anti-UE. «A UE é cinzenta (…) e eu quero dar-lhe cor, porque a minha Europa é feliz, diversificada, colorida, e tem a cara das suas populações», prometeu Marine Le Pen, citada pela France 24. «Estou convencida de que a minha eleição será uma oportunidade para a Europa», afiançou ainda, sem fazer, no entanto, qualquer referência a referendos ou abandonos da moeda única.
Jerome Rivière, um ex-deputado e membro d’Os Republicanos, decidiu apoiar a candidata da FN e fez igualmente por apaziguar os ânimos em volta do nacionalismo, protecionismo e anti-europeísmo desmesurado de Marine. «O objetivo desta noite [quinta-feira] foi o de reassegurar a todos os que possam estar preocupados com a campanha de Le Pen, que [a sua candidatura] é um risco aceitável, mas essencial para a França», disse o antigo parlamentar, em declarações ao Politico, para depois tentar mitigar as suas posições mais controversas: «A mensagem de Le Pen é essencialmente sobre proteção: proteção do terrorismo, proteção da imigração massivas, proteção da Europa e das políticas ultraliberais».
A próxima semana de campanha tratará de esclarecer se esta postura renovada da candidata da extrema-direita é para manter até ao sprint final ou se a máscara da moderação cairá durante o percurso. Por enquanto, nem campanha ‘à Trump’, nem campanha ‘à Le Pen’ parecem estar na agenda. Assim sendo, venha daí a campanha ‘à Marine’.