Abril este ano foi de sol e de bom tempo. Os parques ficaram cheios mais cedo, o frio sempre que veio, espreitou mas não ficou. A Praça Paiva Couceiro, mesmo ao cimo da Rua Morais Soares, é conhecida pelos mais novos que frequentam o quiosque do jardim, pelos pais que passeiam as crianças em triciclos e trotinetes, mas é sobretudo ponto de encontro sagrado para os que, há muitos anos, foram também usufruidores da juventude. “No nosso tempo” é como começam muitas das conversas que se ouvem naquele jardim, a quem alguns chamam de “casino”, não fosse ele o altar dos torneios de dominó e sueca, muitas vezes apostados a dinheiro.
Estamos em vésperas do 1.o de Maio, época que dá que falar aos que já trabalhavam quando se festejou pela primeira vez a liberdade. Há mais que motivos para nos atrevermos a sentar nos bancos em que se trocam cartas e peças e se apontam rondas de vencedores e perdedores. É de evitar as mesas que mais gente reúnem, os ânimos são fortes e é a honra de equipa que está em jogo.
Num banco, de pernas esticadas para a frente, estão quatro senhoras. Umas cruza os braços assim que a conversa começa “O que é que quer saber sobre o trabalho? A vida é que é um rico trabalho” ouve-se no meio da explicação sobre o que vem o i fazer ao “casino”.
Isilda Lucrécia prefere não dizer a idade mas conta que não foi possível terminar sequer a escola primária. “Não me deixaram fazer a quarta classe, fiz só a terceira. Mandaram-me ir servir para casa de pessoas, arranjaram-me uma casa para trabalhar no Porto e depois vim para aqui. Ganhava sete escudos e quinhentos, que antigamente não havia o euro como há agora. Em Lisboa ganhava-se o mesmo que no Porto, foi melhorando até que me casei aos 23 anos”. Sebastiana interrompe: “Já eu comecei a servir aos 16 anos em Lisboa, sou de Viseu. A vida melhorou um bocadinho depois quando embarquei. Ainda não tinha 19 anos, fui percorrer o mundo. Também me diverti e também vivi, mas com o mundo só aprendi a trabalhar. Visitei muitos países? Vários, ganhava 2 contos por mês. Fui durante dez anos monitora de crianças. Trabalhei tanto e agora a reforma é uma verdadeira miséria franciscana”.
Ao ouvir falar em miséria, Carlos, de 70 e poucos anos, levanta-se do banco onde estava sentado: “Estive quatro anos na guerra a defender não sei o quê, sou discriminado, eu e tantos outros, e revolto-me com estas coisas, pessoas que fizeram pelo país são ignoradas, enquanto gente que não fez nada ganha fortunas.” Carlos, que se diz traumatizado com o que viu e viveu na guerra colonial tem “acessos de raiva” que não consegue controlar: “Isto do 25 de Abril foi bom para os oportunistas, que vivem à custa de subsídios sem nunca terem feito nada”. A vida de Carlos, como a de tantos da sua geração, não foi fácil: “Comecei a trabalhar aos nove anos, sou aqui de Lisboa. Fui trabalhar a puxar o linho, até aos 14 anos. Davam-nos o que queriam e nós nem reclamávamos, sempre tudo pago debaixo da mesa. Era a necessidade, não eram os pais que obrigavam, era a necessidade. Aos 14 anos trabalhei direto até aos 65 anos, sem nunca faltar, sem nunca meter uma baixa.” De serralheiro a mecânico, os ofícios iam variando conforme o que aparecia: “Fui para uma oficina de automóveis por volta dos 16 anos e depois foi até aos 65 anos, sempre em oficinas. O meu modo de sorrir e vencer era a trabalhar, porque se não trabalhasse ninguém me dava nada. Os patrões na altura não era como agora, não descontávamos para a Segurança Social e agora pronto, é uma reforma miserável, que não acompanha a evolução do país, a vida está mais cara, mal dá para sobreviver”. Para Carlos, a maior injustiça será sempre haver “pessoas que nunca trabalharam e recebem tanto ou mais do que eu, que trabalhei 50 anos”.
Se não der, a gente encolhe Numa mesa de quatro jogadores, estão apenas três lá sentados. O lugar vago passa a ser preenchido por várias perguntas que fazem com que os três amigos viajem no tempo. Amadeu Loureiro, com oito décadas contadas, prontamente recorre à memória para descrever os tempos em que se trocava a brincadeira por um emprego: “Comecei a trabalhar aos seis anos. A trabalhar para os pais porque se não trabalhasse, não comia. Sou do distrito da Guarda. Saí de casa dos pais para Lisboa tinha 15 anos, vim para ser eletricista. Houve várias fases de condições de trabalho, ali nos anos 60 havia crise, não era como agora mas havia crise. Depois houve a guerra, muita gente emigrou, os que cá ficaram, como havia falta de mão de obra, tinham mais liberdade de exigir algumas coisas aos patrões”. Mas o dinheiro era sempre pouco. “Havia mercearias, não havia era dinheiro. Reformei-me aos 64 anos com 47 anos de descontos para a Segurança Social. A reforma vai dando, se não der a gente encolhe”.
Os amigos comentam que “antes do 25 de abril não podíamos estar aqui os quatro sentados a conversar, chegava ali logo o chapa para nos tramar, era o ‘Alfredo-três-pés’, ficava ali na esquina e apanhava-nos quando queria, a sorte dele foi fugir depois do 25 de abril se não pagava-as bem pagas”.
Tudo mudou Garantem que não foi apenas a liberdade a mudar, agora as pessoas vivem até mais tarde e isso também traz diferenças à qualidade de vida e ao país: “Está tudo diferente. No nosso tempo de jovens era normal os velhos chegarem aos 70, 70 e poucos, agora temos 80 anos e estamos ainda tão bem”.
Amadeu completa o parceiro da sueca: “As mulheres têm tendência a durar menos, a mulher só era mulher depois de casar, agora fazem sexo cedo, bebem tanto ou mais que os homens, fumam tanto ou mais que os homens, passaram de oprimidas para muito mais avançadas que nós, dão conta de tudo, do trabalho à casa, à vida. Têm liberdade”.
António Matos, de 85 anos, o terceiro elemento da mesa que está em pausa de jogo de cartas completa a linha do pensamento do amigo. “As mulheres sempre ganharam menos que os homens, acho ridículo, a mulher do nosso tempo trabalha mais que o homem, trabalha no emprego e em casa. Eu louvo quem ajuda as mulheres em casa, mas realmente não faço nada e sei que está errado. Mas admiro muito a minha mulher e ela tem de descansar. Temos uma mente muito aberta, sei aquilo que quero, que posso, sei quem respeitar e temos de orientar a nossa vidinha para não tropeçar e cair. Está mais que claro que tem de haver igualdade e liberdade, nem sei porque se faz disso discussão”.
Os patrões hoje em dia não prestam Numa mesa mais afastada, está a única mesa com mulheres a jogar. Ana Maria, de 58 anos, está de passagem, veio só cumprimentar as amigas, por isso está disponível para contar a sua história: “Trabalho desde os oito anos, era para ajudar os pais. Ia para a escola e depois ia cuidar de uma menina, filha de uma enfermeira, até aos 12 anos. Depois eles foram para o Canadá mas os meus pais não me deixaram ir com eles. Vim com 14 anos para Lisboa e fui trabalhar para a Portugália. Como era menor, quando apitava o segurança eu escondia-me dentro dos armários porque era proibido trabalhar. Sofri o pão que o diabo amassou”. Ana Maria não está, de todo, satisfeita com a forma como foi sendo tratada no mundo do trabalho: “Casei-me aos 16 anos e tive 5 filhos e 7 abortos. Fui trabalhar para hotelaria e foi a pior coisa que podia ter arranjado, não é difícil, os patrões é que hoje em dia não prestam. Eu sou sindicalizada e tudo, eles prometem que vão mudar mas nunca mudam nada”. Hoje o seu dia de trabalho dura sete horas, mas antigamente chegou a trabalhar 19 horas, pois tinha de manter cinco trabalhos em simultâneo para alimentar a família: “Para poder levar pão para os filhos tinha de ser, o meu marido só queria mulheres e jogo e eu tinha de trabalhar para sustentar as crianças”.
Hoje não quer acreditar que tem de trabalhar para lá dos 67 anos: “Tenho muito pouca saúde, já fui operada 14 vezes e gostava de ter a reforma, estou muito cansada, são muitos anos e os patrões quando fazem um contrato, dizem uma coisa, mas ao final de algum tempo arranjam maneira para que seja tudo diferente. O meu patrão anda tão doido que há mais de 6 meses que não consigo comer uma refeição completa. Ele não nos deixa comer, desde que trabalho lá emagreci 20 quilos. Os patrões hoje em dia não prestam, são cada vez menos sérios, tenho pena de quem hoje em dia começa um trabalho pela primeira vez. Eles fazem a vida negra aos miúdos que eu bem vejo”.
Se Salazar voltasse António Tomás tem 67 anos, começou a trabalhar aos nove. Teve 21 irmãos da mesma mãe e do mesmo pai. Filho mais velho, viu alguns dos irmãos morrer com doenças como o sarampo, a varicela, uma vez que “não havia medicamentos, nasciam e passado pouco tempo morriam”. Aos nove anos “atirava os jornais para as portas e vendia cautelas também. Passou por sapateiro, mais tarde casou: “Estamos juntos há 47 anos. A minha mulher engravidou, saí da tropa, como tenho a doença dos pezinhos, pedi à junta médica para me dispensar e fiquei ilibado. Eu tinha a terceira classe, tirei a quarta classe à noite, já depois de casado e ingressei no Estado. Entrei na Imprensa Nacional da Casa da Moeda, em 1972. Depois do 25 de abril nem há comparação possível com as melhorias das condições de trabalho, já para não falar da maquinaria e dos computadores”.
A empresa, mais tarde, começou a despedir pessoas que estivessem lá há mais anos e, embora não fosse dos mais antigos, era a oportunidade de trabalhar noutras áreas, explica. “Fui guarda-costas do Cavaco Silva, do Santana Lopes e do Carrilho. Eram todos porreiros menos um deles, que era mal educado, nem obrigada dizia à gente. Mais tarde reformei-me, com 44 anos de trabalho. A minha reforma recompensa, porque tenho duas, uma pelo Estado e outra pelo privado.”
António, que joga à sueca em equipa com a sua esposa, que não diz o nome, diz que não entende como é que “este país é tão pequeno, e como é que há tanto ladrão, vigarista, em todas as camadas sociais. Isto podia ser um bom país, mas está cheio de corruptos e antigamente não era assim. A sua esposa concorda: “Se o Salazar viesse cá só uma semana, só uma semana, ele morria logo outra vez”.
O amor também é diferente Apesar de não deixar escrever o nome, diz a idade sem problema. Tem 67 anos, já é bisavó. Ao i partilha o seu encanto por António Tomás: “Nascemos no mesmo ano, no mesmo mês, com 24 dias de diferença. Conhecemo-nos numa janela da Avenida de Roma, trabalhámos juntos na Imprensa Nacional da Casa da Moeda, vivemos os dois, dormimos os dois e agora jogamos às cartas os dois. Não é só o trabalho que está diferente, as relações também, já não há nada disto, somos dois companheiros, é preciso sacrifícios. Não há nem vai haver mais disto”.
A amada de Tomás garante que “se houvesse mais organização e compreensão, mais honestidade, este era um mundo de beleza sem igual”.
Marinha Grande e Barreiro Os pontos industriais do país antes do 15 de abril centravam-se na Marinha Grande e no Barreiro. Foram muitos as crianças e jovens que sairam de casa dos pais à procura de trabalho e de melhores formas de vida. Hoje a realidade económica e industrial destes dois locais é muito diferente. Mas porquê?
Para Henrique Neto, em conversa telefónica com o i, o fenómeno da Marinha Grande hoje é evidente no plano do crescimento da economia. “A Marinha Grande exporta mais de 100% do seu PIB, tem uma balança comercial positiva, o que Portugal está longe de conseguir no seu todo, trabalha quase só para exportação, o desemprego é menor. A região de Leiria em geral e a Marinha Grande em particular formam um cosmos económico muito diferente da média nacional”.
Para o ex-candidato à Presidência da República as interpretações podem ser muitas : “Eu levo isso à conta desta cultura que já vinha do sindicato vidreiro antes e durante a primeira república, mas que já vinha na verdade desde o século XVIII, com a primeira fábrica de vidro mandada construir pelo Marquês de Pombal, em que se importou mão de obra da Inglaterra, Alemanha, Itália. Todos esses trabalhadores que eram imigrantes (e mais tarde quase todos se tornaram empresários), já no século XIX, introduziram uma certa cultura do centro da Europa na Marinha Grande, porque o país era completamente rural, não havia praticamente cultura operária e eles vieram introduzir isso muito cedo” explica.
O efeito dessa cultura do século XVIII que depois se reproduziu com o sindicato vidreiro no século XIX e XX, criaram “um microcosmos muito diferente da grande parte do país”. Henrique Neto conta que, quando se candidatou à Presidência da República chegou, na sua campanha, a levantar uma questão: porque é que o Barreiro, também com uma tradição operária tão antiga (mas muito mais centrado na reivindicação do que na formação cultural) falhou?
Henrique Neto considera que hoje o Barreiro é uma cidade industrial fantasma, e a Marinha Grande, que sempre teve as duas dimensões, cresceu: “Na minha perspetiva foi precisamente causada por essa diferença, em que os sindicatos tinham abordagens diferentes e daí vieram consequências diferentes. Na Marinha Grande havia um sindicalismo cultural, de intervenção na cultura e instrução dos trabalhadores, só depois na reivindicação. No Barreiro era sobretudo a reivindicação e as fábricas hoje estão fechadas, degradou-se , enquanto na Marinha Grande as fábricas são novas, modernas, há centros de investigação enfim. Há ainda o fator de que muitos dos trabalhadores da Marinha Grande tornaram-se empresários, donos de pequenas e médias empresas, enquanto que no Barreiro havia uma maioria de empresas estatais. Para mim tem tudo que ver com a tradição, a história”.
O primeiro de maio era uma reivindicação não apenas política mas também cultural. António Chora conta ao i que a carreira de sindicalista começou na construção civil, numa reivindicação por falta de pagamento atempado do patrão: “Digamos que dei azo a um movimento contra essa situação, depois fui chamado pela direção do sindicato na altura, depois do 25 de novembro. Levei sempre com o carimbo na testa de sindicalista dessa área e fui, passado uns meses, eleito para delegado sindical, mas eu fui sindicalista depois do 25 de abril. Antes era só sindicalizado e sabia que a maioria dos sindicatos eram do regime, se fizéssemos alguma queixa, o patrão sabia logo e éramos despedidos, por isso também se mudava com tanta facilidade de emprego, porque éramos facilmente despedidos. Mas dentro da mesma área era difícil porque os patrões depois comunicavam uns com os outros e ficávamos marcados, por isso tínhamos de mudar de áreas de emprego”
António Chora emocionou-se na revolução dos cravos: “Posso-lhe dizer que no dia 25 de Abril, quando chego a Lisboa e vejo o Terreiro do Paço já ocupado por militares vieram-me as lágrimas aos olhos. Foi um enorme prazer saber o que se estava a passar. Na altura havia algum receio porque tinha havido o golpe das Caldas há pouco tempo e nós tínhamos reunido clandestinamente na Marinha Grande em que alguns militares apareceram para saber qual seria a nossa posição. A verdade é que a nossa posição era levar o pessoal para a rua e nesse dia por muito que os militares pedissem para as pessoas ficassem em casa, o Partido Comunista começou imediatamente a distribuir papéis nas ruas para que as pessoas fossem para as estações dos barcos, para todo lado, para que aquilo não fosse apenas mais um golpe de Estado. Foi graças a essa ação das pessoas na rua que a revolução foi mais longe do que estava realmente preparado. Foi uma revolução do povo”.