Quando Carlos Diogo Santos [jornalista do i e do SOL] pegou no caso do homicídio de Rosalina Ribeiro, companheira do multimilionário Lúcio Feteira, trabalhava no Diário de Notícias. Estava no início de carreira e, apesar de já acompanhar alguns casos importantes, o assassinato de Rosalina Ribeiro – cliente do advogado e político Duarte Lima – tornou-se numa das investigações que acompanhou a par e passo desde o início. Foi – é – o jornalista que mais escreveu sobre o caso em Portugal. “Rio Derradeiro,” o livro que lança agora em coautoria com o inspetor brasileiro Aurílio Nascimento, reconstitui os últimos dias da portuguesa e conta a investigação da polícia brasileira ao crime. Como é normal entre colegas de profissão, tratamo-nos por tu.
Quando é que foi a primeira vez que te deparaste com este caso?
Em 2010. Estava no “Diário de Notícias”, na secção de Segurança e lembro-me de ouvir alguns colegas dizerem que havia uma notícia num jornal brasileiro de que uma cliente do advogado e político Domingos Duarte Lima tinha sido assassinada. Lembro-me de haver um alvoroço na redação e de os editores dizerem que era preciso ver o que se tinha passado. Em primeiro lugar, claro, era preciso saber quem era aquela cliente, se era portuguesa ou brasileira.
Isso foi quanto tempo depois do assassinato?
Muito tempo. Foi no verão de 2010, o crime aconteceu em dezembro de 2009. Portanto, mais de meio ano depois. Se não estou em erro a história chegou a Portugal depois de uma notícia do jornal brasileiro Extra, que até tinha umas letras com azulejos feitas especialmente para este conjunto de reportagens sobre o assassinato da milionária portuguesa. Chamaram a esse especial ‘Herança Maldita’ em alusão à herança do Lúcio Tomé Feteira.
Alguma vez sentiste que encarnaste um papel de justiceiro em relação a esta morte ou foi sempre uma questão de apurar a verdade e de contar a história como jornalista?
Foi sempre um trabalho jornalístico, isso nunca saiu da minha cabeça. Sempre fui muito frio na análise de tudo. Se me perguntas – e como a qualquer pessoa -, claro que impressiona pensar na morte de uma mulher idosa a tantos quilómetros de casa. Mas isso não me fez apegar mais a este trabalho do que a outros.
Começaste este trabalho nos jornais em 2010, estamos em 2017. Há sete anos que vives com esta história e estas personagens. Alguma vez sentiste que os conhecias, tanto a Rosalina como Duarte Lima?
Sinto que conheço um pouco de todos eles. Agora tento sempre, e isso julgo deixar claro na introdução, mostrar que nesta história toda a gente tem um lado bom e um lado mau. A Paula Teixeira da Cruz no prefácio diz uma coisa que é muito interessante: que há uma solidão que perpassa todas essas pessoas. E essa leitura está certíssima. Há realmente uma solidão em toda esta gente – na Rosalina Ribeiro, nos últimos tempos que vive no Rio. Ela tinha amigas, com quem desabafava, mas poucas. Lembro-me de uma frase que uma das amigas diz: “Ela na véspera perguntou-me se não podia ir com ela àquele encontro”.
Solidão e algum medo nesse ponto específico. Ela própria achou os trâmites daquele encontro um bocadinho estranhos tendo em conta o que conhecia de Domingos Duarte Lima, uma relação que já durava há nove anos.
Exatamente. Há ali um ponto em que ela, e não se percebe bem o porquê, começa de um momento para o outro a dizer às amigas que há ali qualquer coisa do outro lado que não está bem.
Houve pormenores que foste mudando ao longo da execução do livro. Por exemplo, o facto de Rosalina nos últimos tempos preferir dormir no escritório e não no quarto. Houve muitos detalhes que tenham mudado ao longo da investigação?
Houve muitos. Esse, por exemplo. Quando comecei a escrever, e de tudo o que era conhecido, ela dormia no quarto. Tentámos sempre fazer o cruzamento de todas as versões e acabámos por descobrir que, nos últimos tempos de vida, Rosalina preferia dormir num sofá no escritório porque, quando se levantava, gostava de ver a praia do Flamengo.
Houve sempre esse cuidado, do livro ser uma reconstituição quase exata dos últimos dias de vida desta pessoa e de toda a investigação espoletada pela morte dela?
Tanto quanto possível. Deixamos claro na introdução que há detalhes e palavras que podem não ter sido ditas daquela forma, que pode ter havido mais uma ou outra palavra.
Mas acreditas que o sentido é aquele, não foi deturpado.
Acredito, tendo em conta as versões que foi possível alcançar. Quanto à hora e duração dos telefonemas não há grande questão porque as chamadas foram rastreadas. Há um mapa de chamadas que ela fez e recebeu e, portanto, a duração é aquela. Depois os amigos que falaram connosco permitiram-nos perceber o que é que ela falou com cada pessoa. Há amigos que relatam que ela lhes ligou a dizer que tinha falado com o advogado e que ele tinha dito isto ou aquilo. Isso permite fazer uma reconstituição tão fiel quanto o possível.
E as conversas que Duarte Lima teve com os investigadores Aurílio e Rogério foram, certamente, mais fáceis de reconstituir.
Claro, no âmbito da investigação eles tiravam notas e há documentação sobre isso.
Como é que defines o género de “Rio Derradeiro”?
Não vejo isto como um romance. Vejo como um caso real que tem muitos traços de romance, mas é o caso em si que tem esses rasgos, nada foi romanceado na descrição.
Houve algum desenvolvimento na Justiça desde que acabaste de escrever o livro?
Na Justiça não. Há pouco tempo aconteceu um episódio que ainda não se percebeu bem. Desde que houve um pedido de detenção das autoridades brasileiras que o nome de Domingos Duarte Lima está na internet no site da Interpol. Portugal não o pode extraditar mas se for outro qualquer estado poderá. E depois de sete anos, houve agora uma atualização nessa ficha de procurado em que se inseriu uma fotografia.
Ou seja, se Duarte Lima sair de Portugal corre o risco de ser detido e extraditado para o Brasil.
Sim.
Resolveram publicar a fotografia do corpo de Rosalina quando foi encontrado e reproduzem o discurso do médico que fez a autópsia. Tiveste dúvidas em pôr estes detalhes no papel?
Não. Não quero dar uma resposta seca, mas a verdade é que este processo é público. Claro que é informação íntima, mas nós também nos comprometemos que este seria o livro em que iríamos contar tudo da investigação. Por isso não fazia sentido passar ao lado da forma como ela foi autopsiada, até para se perceber também quais foram as dificuldades. Além da investigação também contamos as limitações que houve no processo. Por exemplo, referimos que a autópsia poderia ter sido mais complexa, mas naquela cidade não é comum fazer-se.
Até porque quando o corpo de Rosalina foi descoberto era uma desconhecida para as autoridades.
Exatamente. Tentámos ter sempre uma perspetiva crítica, e o Aurílio Nascimento nunca se opôs a isso. Há coisas que, como em qualquer investigação, poderiam ter corrido melhor. O nosso objetivo não era valorizar a investigação, que chegou a determinados resultados, teve os seus méritos e alguns defeitos.
Este crime, desde o início, deixou sempre dúvidas porque a vítima tinha os brincos, o relógio.
Sim, logo aí eliminaram praticamente a hipótese de assalto violento. Aquela mulher tinha tudo, os brincos, os óculos e, mais do que isso, a forma como foi encontrada tinha algumas características que podiam levar para um crime típico na América Latina e outras não. Nos grandes assaltos, os cadáveres são encontrados sempre sem cabeça ou mãos para ser muito difícil identificá-los. Este crime não tinha nada disto. Era uma mulher com os seus bens, deixada num local onde não era normal aparecerem cadáveres.
Ou seja, quem fez isso pensou em muitos pormenores mas não em todos.
A polícia acredita que quem fez isto não estava à espera de uma investigação.
Domingos Duarte Lima referiu-se a ti na imprensa como ‘Mefistóteles’. Tens ideia de como irá acolher este livro?
Não faço ideia. Para mim este foi sempre apenas mais um trabalho, aliás tive sempre quanto possível um relacionamento muito cordial com todas as partes. Incluindo com o doutor Domingos Duarte Lima.
Houve muitos detalhes da investigação a ficar de fora de “Rio Derradeiro”?
É quase impossível meter toda uma investigação num livro [o processo conta com 16 volumes que contêm mais de 3100 folhas e quatro apensos], mas tanto eu como o Aurílio acreditamos que o essencial desta fase está aqui. Não está fora de questão haver um segundo volume com o final.
Já houve acusação e pronúncia. Por que não esperaram pelo julgamento para lançar?
Achámos que este livro era importante para contar que esta investigação aconteceu, qualquer que seja a decisão que venha a sair de um tribunal. E essa investigação teve como resultado claro que Domingos Duarte Lima é o principal suspeito pela morte de Rosalina Ribeiro. Há indícios fortes dos quais não é possível passar ao lado. Mas só os tribunais é que poderão julgar a culpa e este livro não tem qualquer perspetiva justiceira. Falta efetivamente o julgamento que não se sabe se acontecerá em Portugal ou no Brasil, depende de recursos. A defesa de Duarte Lima quer que o julgamento seja no Brasil por considerar que a Justiça brasileira traz mais garantias. Lá é um tribunal de júri, são chamadas pessoas de várias áreas da sociedade que vão definir se o réu é ou não culpado. Em Portugal, este tipo de crime é julgado por um juiz. A resposta a estes recursos pode demorar anos.
E os investigadores do caso preferem que seja julgado cá ou no Brasil?
Não querem nada. A parte da polícia acabou com a acusação. O que toda a gente quer – e isso está presente em todas as conversas que tenho – é que de facto haja um final justo, quer haja ou não condenação, e se perceba quem matou Rosalina Ribeiro.