Filipe. O príncipe relutante sai de cena

Filipe nunca desejou ser uma figura decorativa, mas desempenhou esse papel ao longo de 65 anos. Anuncia que se vai retirar da vida pública e deixar de revelar placas comemorativas. 

Filipe parece nunca ter desejado o papel inerentemente secundário de marido e companheiro da rainha britânica. Quase nunca se faz a pergunta sobre se as rainhas têm algum interesse no mesmo papel, mas, no caso de Filipe, há muito que o sugere. O mesmo caráter prático, pouco polido e direto de antigo militar da marinha que indispôs muita da elite inglesa formada em Eton e seduziu o rei  e sua filha Isabel transformava-o numa figura relutante no quadro decorativo da família real britânica. A morte mais ou menos precoce de Jorge VI só o realçou. Filipe tinha 31 anos quanto Isabel se tornou rainha, aos 25. De chefe de família, Filipe passou a companheiro da monarca. “Suponho que ocupava naturalmente o papel de líder”, recorda dos tempos em que não estava casado com a rainha, de acordo com o livro do biógrafo Philip Eade. “As pessoas costumavam dirigir-se a mim perguntando o que fazer. Em 1952 tudo se alterou, de forma muito, muito dramática.”

Filipe praticamente criou o papel de companheiro da rainha. Pode-o ter feito relutantemente, mas cumpriu-o por mais tempo que qualquer outro. Sessenta e cinco anos de reinado de Isabel II cumprido em fevereiro, 70 anos de casamento em novembro. Esta quinta-feira, o Palácio de Buckingham anunciou que Filipe se vai retirar da vida pública a partir de agosto, uma decisão tomada por ele próprio, com o “total apoio” da rainha e que não significa que a sua saúde – periclitante perto dos 96 anos que fará a 10 de junho – se tenha agravado de alguma forma. Filipe, para além do mais, diz que se manterá nas centenas de organizações a que está associado e que continuará a ir a alguns eventos. Por outras palavras: aos 96 anos, Filipe, o duque de Edimburgo, reclama alguma da autonomia perdida aos 31. “Sou o mais experiente revelador de placas [comemorativas] no mundo” disse na quarta-feira, ao inaugurar uma nova secção de assentos num campo de cricket.

O duque de Edimburgo pode ter passado décadas num cargo monárquico e protocolar, mas nasceu numa dinastia europeia em opóbrio, em cima de uma mesa de jantar, mais precisamente, na ilha de Corfu, onde a sua mãe deu à luz um pequeno Philippos, sexto na linha do trono grego. O seu pai estava por esses dias no comando de uma divisão na campanha da Ásia Menor contra a Turquia, que, de tão catastrófica, quase lhe custou a vida por pena de morte às mãos dos revolucionários que acabariam por abolir temporariamente a monarquia. Antes de uma vida na marinha, Filipe apenas conheceu o exílio, uma habitação incerta, a ausência do pai – distante por escolha – e mãe – distante forçosamente, internada num sanatório –, a tragédia da morte inesperada da irmã, entretanto convertida em militante nazi, com os seus filhos e marido num acidente de avião, durante o qual, teoriza-se, terá dado à luz prematuramente, resultando no cadáver carbozinado de um bebé ainda por formar nos destroços da aeronave. Filipe conservou durante anos um pedaço de madeira do avião destroçado, recolhida no funeral de emblemas nazis em que foi fotografado em 1937.  

Truculento

A sua proximidade com círculos alemães fez germinar rumores sobre sensibilidades nazis. Filipe foi de facto criado sobretudo pelo lado materno e alemão da mãe, princesa de Battenberg, parte dele convertido – por paixão ou interesse – ao nacional-socialismo. Mas o mesmo passava-se com muitos setores da corte britânica. A própria Isabel II foi filmada em criança a fazer a saudação nazi. A monarquia britânica acabaria por torcer o nariz a Filipe sobretudo pela perceção de que não tinha a polidez necessária para casar-se com a herdeira do trono – caçava em calças de flanela, com uma espingarda emprestada e tinha apenas um par de sapatos, por exemplo. Mas esse seria precisamente o traço que mais agradaria a Isabel, com quem Filipe se correspondeu desde que a futura monarca tinha 13 anos, por cálculo do seu influente tio Louis “Dickie” Montbatten, a quem se atribui a responsabilidade do casamento real. 

Mas a falta de polidez não terminou nesses dias de corte a Isabel. Filipe desempenhou o cargo protocolar de acompanhante da rainha com o maior e mais prolongado rol de declarações ofensivas na família real britânica. Os seus comentários insensíveis – ou racial, colonial e sexualmente abusivos – perderam alguma da importância com o avançar da idade e a disposição de um país em perdoar os deslizes de um nonagenário educado numa sociedade altamente patriarcal. Nesses momentos, Filipe parecia revelar a principal frustração no seu papel decorativo. “Tira logo a merda da fotografia”, lançou há dois anos, numa cerimónia.