Revelado enfim o desfecho da segunda volta das eleições presidenciais, haverá seguramente franceses (e europeus!) a suspirar de cansaço, tendo em conta a agenda carregada de atos eleitorais, que encheu o espaço mediático em tão curto espaço de tempo. Desde as primárias da direita em novembro, passando pelas eleições internas socialistas de janeiro, pela primeira ronda da corrida ao Eliseu de há quinze dias ou pela votação final de ontem – ao qual se somaram as presidenciais austríacas ou as legislativas holandesas –, que praticamente não se fala noutra coisa em França, senão de eleições.
Acontece que o roteiro eleitoral francês ainda não acabou. Embora a vitória previsível de Emmanuel Macron sobre Marine Le Pen, com mais de 65% dos votos contra perto de 35%, marque o fim do ato eleitoral pela presidência francesa, há eleições legislativas marcadas para o próximo mês (11 e 18 de junho), pelo que não é de todo invulgar ouvirmos falar na “terceira ronda” das presidenciais.
Se é verdade que o sistema político de França é de natureza presidencialista, cabendo ao chefe de Estado a condução do poder executivo, há que recordar que a Constituição francesa exige ao Presidente a nomeação de um primeiro-ministro, apoiado por uma maioria parlamentar e, naturalmente, de um governo. Numa situação normal, a composição da Assembleia Nacional saída das eleições legislativas costuma retratar a decisão popular tomada nas presidenciais, já que a probabilidade de os eleitores alterarem a sua intenção de voto, num espaço que compreende pouco mais de trinta dias é, tendencialmente, diminuta. Acontece que não vivemos um período político dito ‘normal’.
O movimento En Marche!, de Macron, tem apenas um ano de existência e, apesar de o ex-banqueiro de 39 anos ter anunciado, em janeiro, que aquela plataforma política centrista irá concorrer a todas as 577 circunscrições, é difícil prever uma vitória alargada nas legislativas e, principalmente, um triunfo que consiga garantir a maioria parlamentar necessária para, num primeiro momento, aprovar o novo primeiro-ministro e, num segundo, viabilizar o exercício adequado do poder legislativo.
Coabitação é hipótese
Segundo uma sondagem OpinionWay/SLPV, realizada para o jornal “Les Echos” – que apenas envolve dados relativos a 535 círculos eleitorais –, o “partido” do próximo presidente francês poderá vencer entre 249 a 286 lugares, ao passo que Os Republicanos ficarão pelos 200 a 210 deputados. O mesmo estudo sugere ainda que os socialistas conseguirão 28 a 43 lugares – o pior resultado de sempre da história do partido de François Hollande – e a Frente Nacional, de Le Pen, logrará 15 a 25 parlamentares. Números que envolvem uma enorme dose de especulação, já que o En Marche! apenas apresentou, até agora, pouco mais de uma dezena de candidatos.
Neste sentido, um cenário onde Macron terá de lidar com um parlamento minoritário e um primeiro-ministro de outra cor política, é bastante provável, mesmo sendo, na realidade, uma exceção, tendo em conta a história política francesa do pós-Segunda Guerra Mundial. Três exceções, para se ser mais claro. Entre 1986 e 1988 o socialista François Mitterrand teve de “coabitar” com o primeiro-ministro da UDF – o partido de direita que antecedeu a UMP e Os Republicanos –, entre 1993 e 1995 foi o conservador Édouard Balladur a governar com Mitterrand e, entre 1997 e 2002, Chirac contou com a liderança do executivo levada a cabo pelo socialista Lionel Jospin.
O apoio a Macron propalado pelos candidatos dos partidos tradicionais franceses, derrotados com estrondo na primeira volta da corrida ao Palácio do Eliseu, justificado pelos próprios para impedir que a extrema-direita tome o poder em França, deverá ficar por aqui, finda esta eleição. Mas os resultados das legislativas poderão obrigar a uma nova aliança dos representantes da tradição política francesa em volta do En Marche!, sob pena de o país ficar bloqueado politicamente.
À semelhança do que se verificou nas últimas duas semanas e tendo em conta a insatisfação no rumo seguido nos últimos anos, demonstrada pelo eleitorado francês nas eleições ontem finalizadas, os candidatos a deputados que representam o chamado “sistema francês” poderão ter de reorientar a sua campanha para temas transversais à habitual dicotomia esquerda/direita. Globalização vs nacionalismo e liberalismo vs protecionismo voltarão, seguramente, a estar na agenda durante as próximas semanas, independentemente das previsões pouco animadoras para a Frente Nacional na próxima eleição.
A favor de Macron está, assim, o descalabro eleitoral do Partido Socialista e d’Os Republicanos, a onda de entusiasmo do eleitorado sobre temas transversais à esquerda e à direita e o facto de ser um candidato pró-União Europeia. Contra o centrista está o facto de nunca ter exercido um cargo político para o qual foi eleito, ainda ser colado ao ultraimpopular governo de Hollande – foi ministro da Economia dos socialistas – e, como referido, poder ser obrigado a lidar com um bloqueio da câmara baixa da Assembleia Nacional, caso não consiga uma votação que legitime a sua liderança ou, mesmo conseguindo, não reúna o apoio suficiente de deputados dispostos a governar consigo.
“[Macron] terá de organizar um maioria parlamentar do zero, em poucas semanas. Sozinho, não é ninguém”, lembra ao “The Guardian” Pascal Perrineau, um académico da conceituada universidade parisiense Siences Po. “A política é uma carreira completa, as pessoas não vão apoiá-lo apenas por ter um sorriso extraordinário, sangue jovem e olhos azuis. Terão de haver negociações bem sérias”, acrescenta o especialista em investigação política.
Andrew Knapp, da Universidade de Reading, partilha da mesma opinião de Perrineau e prevê que Macron possa vir a ter pela frente uma “guerra prolongada de manobras parlamentares”, para aprovar legislação, através da constituição de “diferentes maiorias para diferentes questões”. “Tudo dependerá do tamanho das forças pró-Macron no parlamento”, afirma o professor de Estudos Europeus daquela instituição britânica.
Perante um atropelo de cenários nunca vistos na história da V República francesa, a eleição de Emmanuel Macron é apenas mais um dado nesta equação invulgar que chegou a várias arenas políticas das democracias ocidentais e que teve início com a decisão dos britânicos pelo abandono da UE. Com o próprio Reino Unido e a Alemanha posicionados para as próximas eleições, ainda é cedo para se tirarem conclusões sobre o desenho político europeu saído dos atos eleitorais dos últimos meses. Mas há, claro, material suficiente para se verificar que, por enquanto, a extrema-direita continua afastada dos principais órgãos de poder, mesmo tendo crescido. E muito. Essa será a reflexão a fazer daqui para a frente por eleitores, políticos e candidatos.