Aparições. Especulação ou milagre?

As primeiras notícias sobre as aparições em 1917 mostram a comoção dos fiéis, as dúvidas que causaram e a perplexidade com o milagre do sol. As visões dos pastorinhos só seriam declaradas “dignas de crédito” pela Igreja portuguesa em 1930. Hoje estão entre as 16 aparições reconhecidas pelo Vaticano, apenas quatro nos últimos 100 anos.…

“Uma embaixada celestial… especulação financeira”

23 de julho de 1917

“Há muito tempo que nesta localidade corria com insistência o boato de que num determinado ponto da serra de Aire apareceria no dia 13 do corrente a mãe de Jesus Cristo a duas criancinhas, a quem já por diversas vezes tinha aparecido, e no mesmo local. Este boato, como é de supor, despertou a curiosidade geral na vila de Torres Novas e subúrbios, entre os quais se conta esta localidade, arrastando ao referido ponto milhares de criaturas, umas, as descrentes, para assistirem a qualquer coisa interessante; outras, as religiosas, por credulismo e devoção.

O caso é que o acontecimento foi tão empolgante que, em Torres Novas, vila, como todos sabem, abundante em alquilarias, no referido dia não se encontrava sequer um carro para alugar, chegando mesmo a fechar bastantes estabelecimentos. (…) Num impulso de irresistível curiosidade (pois o caso é de molde a despertá-la), acercámo-nos no dia seguinte duma criatura, que, creio também, fez parte da romagem pelas completas informações que soube dar-me, e dirigimos-lhe algumas perguntas acerca do assunto, às quais, com uma inflexão de voz, que bem deixava transparecer a emoção que sentia, respondeu da forma seguinte:

No dia 13, que estava designado para a aparição de Nossa Senhora, dirigimo-nos ao local indicado. Já ali fervilhavam milhares de pessoas, que, impulsionadas pelo desejo de a verem, ali se tinham arrastado, vindo de longínquas povoações algumas delas. (…) Nisto, ouve-se um ruído semelhante ao ribombar do trovão e logo a seguir as duas crianças, que estavam junto duma carrasqueira circundada por muitas florinhas, creio que paradisíacas, irromperam num choro aflitivo, fazendo gestos epiléticos e caindo depois em êxtase. A uma delas, a que tinha o privilégio de ouvir e ver a santa, fizeram várias pessoas muitas perguntas, às quais respondia dizendo que via uma espécie de boneca muito bonita, que lhe falava. Tinha, dizia, um resplendor em torno da cabeça e chamava-a para junto de si, numa voz muito fininha e melodiosa. Entre muitas coisas que lhe disse, a principal foi anunciar-lhe a sua reaparição do dia 13 a um mês e no mesmo sítio, aparecendo ainda mais outra, para declarar o motivo por que tinha vindo ao mundo.

Agradecidas as informações que a mulherzinha prestou, retirei-me, formulando uma opinião. O caso parece extremamente irrisório e, seriamente, não o teria acreditado se aquela criatura não merecesse a máxima confiança por ser sincera e verdadeira e não fosse corroborado por outras que o contaram, empregando as mesmas palavras e citando os mesmos factos. Entretanto, é minha opinião que se trata duma premeditada especulação financeira, cuja fonte de receita existe nas entranhas da serra, em qualquer manancial de águas minerais que recentemente tenha descoberto algum indivíduo astucioso que, à sombra da religião, quer transformar a serra de Aire numa estância miraculosa como a velha Lourdes.” – Do correspondente do jornal “O Século”, em Meia-Via, Torres Novas

“Coisas espantosas! como o sol bailou ao meio dia em fátima”

15 de outubro de 1917

“Em Ourém só por uma amabilidade extrema se encontra aposentadoria. Durante a noite, reúnem-se na praça da vila os mais variados veículos conduzindo crentes e curiosos sem que faltem velhas damas vestidas de escuro, vergadas já ao peso dos anos, mas faiscando–lhes nos olhos o lume ardente da fé que as animou ao ato corajoso de abandonar por um dia o inseparável cantinho da sua casa. Ao romper da alva, novos ranchos surgem intrépidos e atravessam, sem pararem um instante, o povoado, cujo silêncio quebram com a harmonia dos cânticos que vozes femininas, muito afinadas, entoam num violento contraste com a rudeza dos tipos…

O sol nasce, mas o cariz do céu ameaça tormenta. As nuvens negras acastelam-
-se precisamente sobre as bandas de Fátima. Nada, todavia, detém os que por todos os caminhos e servindo-se de todos os meios de locomoção para lá confluem. Os automóveis luxuosos deslizam vertiginosamente, tocando as buzinas; os carros de bois arrastam-se com vagar a um lado da estrada; as galeras, as vitórias, os caleches fechados, as carroças nas quais se improvisaram assentos vão ajoujados a mais não poderem. Quase todos levam com os farnéis, mais ou menos modestos.

(…) Pelas dez horas, o céu tolda-se totalmente e não tardou que entrasse a chover a bom chover. As cordas de água, batidas por um vento agreste, fustigam os rostos, encharcando o macadame e repassando até aos ossos os caminhantes desprovidos de chapéus e de quaisquer outros resguardos. Mas ninguém se impacienta ou desiste de prosseguir.

(…) O ponto da charneca de Fátima, onde se disse que a Virgem aparecera aos pastorinhos do lugarejo de Aljustrel, é dominado numa enorme extensão pela estrada que corre para Leiria, e ao longo da qual se postaram os veículos que lá conduziram os peregrinos e os mirones. Mais de cem automóveis alguém contou e mais de cem bicicletas, e seria impossível contar os diversos carros que atravancaram a estrada, um deles o auto-omnibus de Torres Novas, dentro do qual se irmanavam pessoas de todas as condições sociais. (…) Visto da estrada, o conjunto é simplesmente fantástico. Os prudentes campónios, abarracados sob os chapéus enormes, acompanham, muitos deles, o desbaste dos parcos farnéis com o conduto espiritual dos hinos sacros e das dezenas do rosário.

(…) E os pastorinhos? Lúcia, de 10 anos, a vidente, e os seus pequenos companheiros, Francisco, de 9, e Jacinta, de 7, ainda não chegaram. A sua presença assinala-se talvez meia hora antes da indicada como sendo a da aparição. Conduzem as rapariguinhas, coroadas de capelas de flores, ao sítio em que se levanta o pórtico. A chuva cai incessantemente mas ninguém desespera. Carros com retardatários chegam à estrada. Grupos de fiéis ajoelham na lama e a Lúcia pede-lhes, ordena que fechem os chapéus. Transmite-se a ordem, que é obedecida de pronto, sem a mínima relutância. Há gente, muita gente, como que em êxtase; gente comovida, em cujos lábios secos a prece paralizou; gente pasmada, com as mãos postas e os olhos borbulhantes; gente que parece sentir, tocar o sobrenatural…

A criança afirma que a Senhora lhe falou mais uma vez, e o céu, ainda caliginoso, começa, de súbito, a clarear no alto; a chuva para e pressente-se que o sol vai inundar de luz a paisagem que a manhã invernosa tornou ainda mais triste…
A hora antiga é a que regula para esta multidão, que cálculos desapaixonados de pessoas cultas e de todo o ponto alheias às influências místicas computam em trinta ou quarenta mil criaturas… A manifestação miraculosa, o sinal visível anunciado está prestes a produzir-se – asseguram muitos romeiros… E assiste-se então a um espetáculo único e inacreditável para quem não foi testemunha dele. O astro lembra uma placa de prata fosca e é possível fitar-lhe o disco sem o mínimo esforço. Não queima, não cega. Dir-se-ia estar-se realizando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal se levanta, e aos espetadores que se encontram mais perto se ouve gritar: – Milagre, milagre! Maravilha, maravilha!

Aos olhos deslumbrados daquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o sol tremeu, o sol teve nunca vistos movimentos bruscos fora de todas as leis cósmicas – o sol “bailou”, segundo a típica expressão dos camponeses. (…) O maior número confessa que viu a tremura, o bailado do sol; outros, porém, declaram ter visto o rosto risonho da própria Virgem, juram que o sol girou sobre si mesmo como uma roda de fogo de artifício, que ele baixou quase a ponto de queimar a terra com os seus raios… Há quem diga que o viu mudar sucessivamente de cor… São perto de quinze horas. O céu está varrido de nuvens e o sol segue o seu curso com o esplendor habitual que ninguém se atreve a encarar de frente. E os pastorinhos? Lúcia, a que fala com a Virgem, anuncia, com ademanes teatrais, ao colo de um homem, que a transporta de grupo em grupo, que a guerra terminara e que os nossos soldados iam regressar…

(…) Vendedores ambulantes oferecem os retratos das crianças em bilhetes postais e outros bilhetes que representam um soldado do Corpo Expedicionário Português “pensando no auxílio da sua protetora para salvação da Pátria” e até uma imagem da Virgem como sendo a figura da visão… Bom negócio foi esse e decerto mais centavos entraram na algibeira dos vendedores e no trono das esmolas para os pastorinhos do que nas mãos estendidas e abertas dos leprosos e dos cegos que, acotovelando-se com os romeiros, atiravam aos ares seus gritos lancinantes…

(…) Resta que os competentes digam de sua justiça sobre o macabro bailado do sol que hoje, em Fátima, fez explodir hossanas dos peitos dos fiéis e deixou naturalmente impressionados – ao que me asseguraram sujeitos fidedignos os livres pensadores e outras pessoas sem preocupações de natureza religiosa que acorreram à já agora celebrada charneca. – Avelino de Almeida, “O Século”.

“Projeto de manifesto contra Fátima”

26 de outubro de 1917

“Considerando que a excessiva benevolência dos dirigentes da República para com os seus mais figadais e intransigentes inimigos tem dado lugar a que estes perante nada recuem já para a consecução, felizmente mais que problemática, dos seus tenebrosos fins, e que a invenção dos fantasiosos e ridículos milagres de Fátima é uma prova evidente do grau de descaramento a que chegaram na sua audácia desenfreada; considerando que é urgente reclamar dos poderes públicos que ponham imediato cobro a semelhante ignomínia, à qual se deve também opôr uma intensa propaganda, que se deve desde já fazer por todos os meios legais, custe o que custar e doa a quem doer, propaganda que se não pode nem deve protelar sob motivo ou pretexto algum, se não quisermos que, quando pretendamos debelar o mal, seja ele já irremediável, proponho: 1º – que se oficie ao chefe do governo e aos ministros do interior e da justiça, informando-os do ignominioso manejo clérico-reacionário e pedindo-lhes, a cada um na sua alçada, enérgicas e imediatas providêprncias; 2.º – que se publique um manifesto fazendo ver o que há de insensato e de pernicioso em semelhante invenção e os fins miseráveis a que obedecem os seus autores; 3º – que se consulte o delegado da Associação do Registo Civil em Vila Nova de Ourém sobre a conveniência de ir ali uma missão de propaganda que, expondo-se a todos os perigos, arrostando com todas as dificuldades e vencendo todos os obstáculos, oponha a essas tramóias horripilantes à luz esplendorosa da razão e de ciência; 4º – que se oficie a todos os nossos representantes gerais e delegados nas províncias, ilhas adjacentes e colónias, pedindo-lhes que cada um na sua esfera de ação faça a mais intensa propaganda contra esta odiosa tentativa de fanatização do povo”

– Comissão de Propaganda da Associação do Registo Civil, in Documentação crítica de Fátima

 

“Fátima”

10 de novembro de 1917

“O dia 13 apresentou-se de chuva, o céu plúmbeo e vento. Às 9 ou 9½ mais escureceu e mais chovia, parecendo-nos não poder melhorar o dia. Como víssemos que a chuva continuava, às 11 horas, tomámos a resolução de sair da nossa estufa e do mirante…, e seguimos com os ranchos em direção ao local que uns pastorinhos anunciaram como teatro de cenas sobrenaturais. Ao meio dia chegaram os 3 pastorinhos. Lúcia, de 10 a 11 anos, é que fala; os outros, Jacinta, a mais nova, e Francisco, irmãos um do outro e primos de Lúcia, diziam ter visto uma Senhora muito linda, toda vestida de branco com uma nuvem aos pés.

Passados minutos, depois da chegada dos pastorinhos, cessou a chuva, e o céu, até ali escuro, precisamente à hora (seria 1 da tarde) em que os três astrónomos anunciaram o caso mais fenomenal que se podia dar, em , em frente ao local da anunciada aparição, o céu aclarou um pouco, o que fez que quase todos os olhares instintivamente fitassem o mesmo local. Cena verdadeiramente impressionável, presenciada por 40:000 a 50:000 pessoas, tantas foram aproximadamente calculadas! Não afirmo o que não vi. Não vimos a Nossa Senhora, nem nos consideramos dignas disso. Mas vimos no sol, por si só, a afirmação dum fenómeno, dum caso sobrenatural! Como foi e donde veio, não sabemos explicar. Mas o facto deu-se e contra factos não há argumentos.

Como já disse, à 1 hora, no céu, lugar onde a nuvem se desviara, aclarou; e qual o nosso espanto, quando apareceu um globo, prateado, fazendo um pequeno giro e aparecendo atravessado aqui e além pelas nuvens! Isto por 3 vezes, com intervalo, talvez, de 3 a 4 minutos. Nesta ocasião, à nossa retaguarda, dava-se a cena dos pastorinhos junto à azinheira; nós ficámos a 7 ou a 10 metros deste local para escaparmos à turba-multa.

A mais velha das pastorinhas impôs nesta altura silêncio e o resto da cena, ali, era para os 3! Depois deste simpático ensaio ou prelúdio ao Astro-Rei, como que eclipsado pelas nuvens, mas não de todo encoberto, de súbito rompe em todo o esplendor, muito diferente do usual, uma nuvem ou chama vermelha brilhantissima que o encobria, e passados momentos aquelle globo ou esfera se agitava nervosamente como impelido por eletricidade. Parecia avolumar-se e querer preciitar-se ou falar para a terra, a anunciar um caso de regozijo e pavor! Mudou este cenário uma nuvem amarela, dourada; e assim foi desaparecendo esta realidade, que aos mortais parecera um sonho!

– Carta de uma assinante publicada no jornal “Correio da Beira”. “Panfleto contra Fátima”

2 de dezembro de 1917

(…) Agora é ao próprio milagre que se recorre para embrutecer o povo pelo fanatismo e pela superstição. Que vem a ser um milagre? Nada mais do que uma contravenção às leis imutáveis da natureza, muito mais grave do que a transgressão de uma postura municipal, e por isso mesmo muito mais digna de castigo do que de veneração. Todavia houve quem, conjugando gananciosíssimo com espírito fanatizador, arranjasse, com cenário esplendoroso em que o luxo espaventoso do automóvel se casava hibridamente com modéstia da carriola aldeã e com a humildade do peão, uma comédia indecorosa que há dias levou milhares de pessoas a assistir, em Fátima, à exibição de uma fita ridiculamente fantasiosa em que se incutia no espírito do povo ingénuo a sugestão coletiva de uma suposta aparição da virgem mãe de Jesus de Nazaré a três crianças sugestionadas ou industriadas para servirem de comparsas a essa torpe e vergonhosa especulação, a um tempo mercantil e clérico-reacionária! Como, porém, não bastassem as tolas declarações dos pobres petizes a quem a tal virgem aparecia e falava sem que mais ninguém a visse e ouvisse, inventou-se quem visse o sol, a determinada hora de 13 de outubro de 1917 (…) dançar o fandango ou o chifarote com as nuvens!

(…) A República e os cidadãos que têm a seu cargo a tão nobre quão espinhosa missão de a dirigirem e de a fazerem trilhar à senda gloriosa da Civilização e do Progresso, não têm o direito de consentir na bestificação do povo pelo fanatismo e pela crendice, pois isso seria, para ela e para eles, uma falta imperdoável ao cumprimento do seu primordial dever, não só para com a Pátria, mas para com a Humanidade em geral. É, pois, dever indeclinável de todos nós reclamar dos poderes públicos, enérgicas e imediatas providências que desde já ponham ponto final nessa especulação abusiva com que a reação pretende fazer retrogradar o povo ao medievalismo.

– Associação do Registo Civil e a Federação Portuguesa do Livre Pensamento, in Documentação crítica de Fátima

Relato de José Almeida Garrett

18 de dezembro de 1917

(…) As nuvens que corriam ligeiras de poente para oriente não empanavam a luz (que não feria) do sol dando a impressão facilmente compreensível e explicável de passar por detrás, mas, por vezes, esses flocos, que vinham brancos, pareciam tomar, deslizando ante o sol, uma tonalidade rosa ou azul diáfana. Maravilhoso é que, durante longo tempo, se pudesse fixar o astro, labareda de luz e brasa de calor, sem uma dor nos olhos e sem um deslumbramento na retina, que cegasse. Este fenómeno com duas breves interrupções em que o sol bravio arremessou os seus raios mais coruscantes e refulgentes, e que obrigaram a desviar o olhar, devia ter durado cerca de dez minutos.

Este disco nacarado tinha a vertigem do movimento. Não era a cintilação de um astro em plena vida. Girava sobre si mesmo numa velocidade arrebatada. De repente ouve-se um clamor como que um grito de angústia de todo aquele povo. Todos estes fenómenos que citei e descrevi observei-os eu sossegado e serenamente sem uma emoção ou sobressalto.

A outros cumpre explicá-los ou interpretá-los. Para terminar devo fazer a afirmação, que nunca, nem antes nem depois do dia 13 de outubro, vi iguais fenómenos, solares ou atmosféricos.

– Enviado pelo professor da Faculdade de Ciências Naturais de Coimbra ao pe. Manuel Nunes Formigão, que reuniu relatos de testemunhas das aparições de Fátima

 

 

 

Treze segredos de Fátima. Da bala que encaixou na coroa à história das promessas de jeolhos

O i reuniu algumas curiosidades que poderão passar mais despercebidas aos peregrinos que por estes dias se reúnem em Fátima. Do buraco que pareceria feito de propósito para o projétil que atingiu João Paulo ii às “sósias” de Nossa Senhora – são 13 e uma delas está esta sexta-feira

Na ONU –, passando ainda pelas velas de cera de abelha. Um mistério mais mundano continua a ser as contas do santuário, que já não são apresentadas publicamente há onze anos, o que a Igreja atribui a um impasse na aplicação da Concordata.

O estranho caso da coroa 

Em 1984, para agradecer a “divina providência” de Nossa Senhora no atentado de 1981, João Paulo II ofereceu a Fátima uma das balas que o atingiram. O santuário decidiu pôr o projétil na coroa da imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, a escultura que é venerada na Capelinha das Aparições, e é aí que começa o mistério.

A imagem de N. Sra. foi oferecida à paróquia de Fátima em 1920. Já a coroa aparece duas décadas mais tarde: é entregue a Fátima em 1942, depois de uma campanha nacional de donativos dos portugueses, num sinal de gratidão à Virgem pelos filhos poupados na II Guerra Mundial. É feita de ouro, pesa 1,2 quilogramas e tem, diz o santuário, 313 pérolas e 2679 pedras preciosas.
O pormenor mais estranho dá-se em 1989, quando o santuário pede à joalharia de Lisboa a quem tinha sido confiada a criação da peça nos anos 40 para encastrar no conjunto a bala de João Paulo II. “A bala encontrou o encaixe perfeito no espaço vazio, deixado em 1942 na união das oito hastes que constituem a coroa de Rainha”, diz o site da joalharia Leitão & Irmão Joalheiros. A cavidade onde foi encastrada a bala era mesmo a única que tinha sido deixada pelo joalheiro na peça original. Se vai a Fátima por estes dias, vai poder espreitar ao vivo a peça. A coroa com a bala é utilizada oito vezes por ano, nos dias das aparições – 13 maio, 13 junho, 13 julho, 13 agosto, 13 setembro, 13 outubro – a 15 agosto e a 8 de dezembro.

Nossa Senhora e as 13 sósias

Ainda falando da imagem de Nossa Senhora dos anos 20, provavelmente já ouviu falar das “sósias” que correm o mundo. No início, pensou-se que a escultura da Capelinha das Aparições pudesse responder aos convites, mas a primeira viagem mostrou que ia ser complicado. A primeira vez que saiu de Fátima foi para um congresso da juventude católica feminina em Lisboa, em abril de 1942. A viagem até à capital demorou dois dias e passou por Leiria, Aljubarrota, Alcobaça, Caldas da Rainha ou Óbidos, terras que se “engalanaram” para o cortejo. O regresso começou a 13 de abril. “É como em Fátima, mas mais triste ainda, porque Ela vai partir e não volta”, escreve o “Diário de Lisboa”. Passaria por Vila Franca, Azambuja, Santarém e chegaria às 16h40 à Cova da Iria, “seguido de numerosos automóveis e de milhares de pessoas no meio de um delírio indescritível”. A imagem tornaria a sair outras cinco vezes entre os anos 40 e 50, mas os riscos de danificação levaram o santuário a só enviar a escultura original em ocasiões especiais. Desde os anos 80, saiu seis vezes, duas delas para o Vaticano, uma a pedido de João Paulo II (1984) e a última a pedido de Francisco (2013). Para fazer a vez da original nas viagens, apareceram as imagens peregrinas, a primeira logo em 1947, por indicação da irmã Lúcia. Esta primeira imagem visitou mais de 64 países, mas entretanto também passou a estar guardada no santuário e só sai em ocasiões especiais. Há 13 imagens peregrinas idênticas à primeira. Uma delas vai estar esta sexta-feira na sede da ONU, em Nova Iorque.

 

A horta da família de Lúcia

O local onde é hoje a Capela das Aparições no santuário de Fátima, que começou a ser destino de peregrinação logo em 1917, pertencia à família de Lúcia. A religiosa chegou a contar que, quando, em agosto, a aparição aconteceu nos Valinhos e não na Cova da Iria, a mãe dela – que não reagiu bem ao aparato em torno das crianças e pedia-lhes que dissessem a verdade – ficou satisfeita. “Se essa Senhora vier agora, a aparecer aqui nos Valinhos, ainda é bom, porque, talvez, essa gente venha para aqui, e deixem de ir à Cova de Iria. Aqui nos Valinhos, não causam tanto prejuízo, porque não é terra cultivada”, lembrou Lúcia, na sexta memória publicada em 1993. Tornaram a ver a virgem na Cova da Iria, que seria sempre o centro do culto em Fátima. A Igreja acabou por comprar os terrenos logo no início dos anos 20, não só à família de Lúcia mas a outros proprietários nas imediações para “organizar” as manifestações religiosas no local, isto mesmo antes de ser concluído o processo de validação das visões. A construção da Capela das Aparições começou em 1919.

 

Fontes nunca secaram

Logo nas primeiras romarias, que implicavam alguns quilómetros a pé desde a estação de comboios de Chão de Maçãs (hoje, o apeadeiro de Fátima), a igreja local apercebeu-se de um problema: o sítio não tinha água. Foram mandados abrir poços que, segundo a lenda, nunca secaram nos últimos cem anos, mesmo em período de seca. Os poços originais encontram-se hoje debaixo do santuário, onde existem alguns túneis de acesso. Dentro do santuário existe um único fontanário, na base da estátua do Sagrado Coração de Jesus. Tem quatro bicas. As propriedades da água nunca foram demonstradas e a Igreja chegou a determinar que fossem usadas apenas no local pelos peregrinos para matar a sede, mas no passado chegaram a ser motivo de romaria, à semelhança da atração da “água milagrosa de Lourdes”.

 

As contas do santuário

São um dos mistérios mais mundanos em torno de Fátima e que tem vindo a agudizar-se: desde 2006 que o santuário não divulga publicamente os relatórios e contas, depois de o conselho nacional ter entendido que existem falhas na regulamentação da Concordata entre o Vaticano e o Estado Português em matéria fiscal.

Nesse ano, as ofertas ao santuário totalizavam  9.311.455 milhões de euros. A atividade registava, ainda assim, um prejuízo de 3.702.414 euros, justificado com a construção da Igreja da Santíssima Trindade.

 

A história dos joelhos

São uma das tradições de Fátima que causam maior estranheza. Foi Lúcia que a começou e o relato surge nas suas primeiras memórias. A mãe da pastorinha mais velha, que tinha sido sempre cética dos relatos das aparições, estava doente em casa e os filhos pensavam que ela ia morrer. As irmãs mais velhas de Lúcia dizem-lhe, a certa altura, “se é certo que tu viste Nossa Senhora, vai agora à Cova da Iria, pede-lhe que cure a nossa mãe. Promete-lhe o que quiseres, que o faremos; e então acreditaremos”. Lúcia foi à Cova da Iria e prometeu que, se a mãe ficasse boa, iria durante nove dias seguidos desde o “cimo da estrada” (onde está hoje a cruz de madeira no santuário) até à carrasqueira a rezar e, no último dia, daria de comer a nove crianças pobres. Quando regressou a casa a mãe tinha melhorado e passados três dias já estava de pé. Acabou por ir com ela pagar a promessa. Dizia: “Nossa Senhora curou-me e eu parece que ainda não acredito! Não sei como isto é!”, escreveu Lúcia em 1935.

 

A escultora que viu Francisco

Um dos lugares de peregrinação por estes dias é a Loca do Cabeço, onde Francisco, Jacinta e Lúcia dizem ter visto o Anjo de Portugal aparecer em 1916. O sítio tem estátuas do anjo e dos três videntes, que começaram a ser feitas em 1958 pela escultora Maria Amélia Carvalheira da Silva. Numa entrevista publicada em 2003 no jornal “Cerveira Nova”, um anos antes de morrer, a escultora ligada à arte sacra, falava de um episódio insólito durante a preparação da obra. Depois de ter esculpido as imagens do Anjo, da Lúcia e da Jacinta, faltava-lhe o modelo para o Francisco. Um dia, perto do Natal, ouviu as gargalhadas de uma criança à porta do estúdio. Abriu a porta e viu um rapaz, que acabou por lhe servir de inspiração. Quando as esculturas foram expostas, o pai de Francisco e Jacinta, que ainda era vivo, disse que a cara era mesmo a do filho.
A escultora nunca percebeu quem era a criança.

 

As premonições…

Os estudiosos do segredo de Fátima e das revelações têm apontado para algumas profecias que os pastorinhos não teriam como saber de antemão. A ideia de que Jacinta e Francisco morriam em breve mas que Lúcia ficaria é uma delas – os irmãos morreram vítimas da epidemia de gripe pneumónica em 1919 e 1920. A terceira parte do segredo que lhe foi confiado, e que Lúcia escreveu em 1941, anuncia que no reinado de Pio XI começará uma guerra pior – em 1917 estava em curso a primeira guerra. Embora só tenha sido escrita já com a II Guerra Mundial em curso, os defensores do segredo dizem que seria impossível a criança saber o título do futuro Papa. A religiosa falou também de uma luz incomum antes da guerra, profecia que tem sido ligada à aurora boreal de 25 de janeiro de 1938, que causou espanto na Europa. O anúncio da conversão da Rússia é também apontado como premonitório, dado que a revolução marxista que viria a proibir a prática religiosa aconteceu a 25 de outubro de 1917. O facto de os segredos só terem sido revelados mais tarde gerou sempre dúvidas.

 

Em outubro de 1917 já havia voluntários

No ano passado, o santuário de Fátima registou 5,3 milhões de participantes em celebrações, apoiadas por 312 funcionários do santuário e 431 voluntários, isto sem incluir os voluntários dos Servitas de Nossa Senhora de Fátima. A história desta associação de leigos e religiosos que presta auxilio durante as peregrinações remonta à aparição de outubro de 1917. Na altura, um advogado de Torres Novas, Carlos de Azevedo Mendes, terá sido incumbido de proteger os pastorinhos no meio da multidão até chegarem à Cova da Iria. Em 1924, foi criada esta associação de voluntários, ainda antes da Igreja reconhecer formalmente que as aparições eram dignas de crédito. Hoje podem pertencer aos servitas maiores de 17 anos, depois de passarem por um curso. São fáceis de distinguir entre a multidão: os homens usam uma espécie de suspensórios, correias que eram usadas para transportar as macas com peregrinos que se sentiam mal. As mulheres usam uma bata de enfermeira.

 

A outra visão de Fátima

O Vaticano só reconhece 16 aparições marianas (ver págs. 20-21) e os relatos dos pastorinhos são uns dos que geraram maior devoção. Mas mesmo ao lado da Cova da Iria, a quatro quilómetros por estrada, há relatos de um acontecimento parecido no século XVIII, em que uma pastora muda terá visto Nossa Senhora aparecer no meio de urtigas, pedindo-lhe para ser construída naquele lugar uma capela. O relato chegou a ser investigado pela Santa Sé, mas não foi reconhecido. A primeira capela do santuário de Nossa Senhora de Ortiga (de urtiga) foi construída em 1758.

 

Toneladas de velas amarelas

A entrega de velas a Nossa Senhora é uma das tradições populares que em Fátima tem o ponto alto na procissão de 12 de maio. Em 2013, data dos últimos dados, foram derretidas 18 toneladas de cera só na procissão das velas. A venda deste artigo em Fátima terá começado nos anos 30. O jornal “Médio Tejo” recordou a história há uns dias, lembrando que havia vendedores de duas aldeias, Monsanto (a 27km) e Cardigos (a 86km). Na altura, as velas eram feitas de cera de abelha e não de parafina. Para manter a tradição, as velas usadas em Fátima continuam a ter o tom amarelado das do princípio do século passado. 

 

A pequena azinheira e a grande azinheira

Quando começou a ser construída a capela das aparições, as pessoas que ali iam em romaria já tinham arrancado tantos ramos à  carrasqueira (pequena azinheira) onde os pastorinhos diziam ter visto a Senhora que a árvore tinha morrido. Nas obras, algumas pessoas ficaram com as raízes, conta ao i Madalena Fontoura, que tem estudado a devoção mariana. Restou apenas a azinheira grande, que também aparece nos relatos, hoje uma árvore de grande porte ao lado da capela. Em 2007 foi classificada árvore de interesse público. Com cem anos de idade, tem 13,5 metros e um diâmetro de 19,3 metros.

 

A História do Hino

A música “a treze de maio, na Cova da Iria…” será das mais repetidas por estes dias em Fátima. O poema é atribuído a António Botto, que enviou os versos ao Cardeal Cerejeira. Botto, homossexual, tinha sido afastado do trabalho no Estado em Portugal e estava expatriado no Brasil.