“Se amanhã morrer, morro superfeliz”, declarou Salvador Sobral na entrevista do último sábado ao programa “Alta Definição”.
A final da Eurovisão ainda está a quatro dias mas o representante nacional já foi capaz de gerar entusiasmo inaudito pelo concurso nas últimas décadas. Em Portugal, onde tem vindo a cimentar o estatuto de herói nacional a cada dia, e internacionalmente.
Os elogios têm chegado das vozes mais improváveis. Por exemplo, de Conchita Wurst, a personagem do cantor austríaco Thomas Neuwirth, vencedora da Eurovisão em 2014. Para “Amar pelos Dois”, canção escrita por Luísa Sobral e interpretada pelo irmão, uma legenda no Twitter bastou: “tão bonito”. “Se ganhou uma miúda com barba, por que não ganhar um gajo com uma canção meio jazz meio bossa?”, respondera bem humorado Salvador Sobral à “Notícias Magazine” antes de saber do comentário.
Desde 2010 que Portugal não chegava à Eurovisão. Quando o concurso parava o país, a mãe Luísa Villar (n. 1960) – nome conhecido do meio do marketing e da comunicação – era uma criança. Portugal sentou-se à frente da televisão e vibrou com a rivalidade entre Simone de Oliveira (vencedora em 1965 com “Sol de Inverno”) e Madalena Iglesias (vitoriosa no ano seguinte com “Ele e Ela”), o barítono de Eduardo Nascimento a interpretar “O Vento Mudooooooouuuuuuu” e a senha para o 25 de Abril d’”A Tourada” de Fernando Tordo. Simone de Oliveira bisou em 1969 com a “Desfolhada Portuguesa” mas a melhor classificação na Eurovisão foi obtida pela “Festa da Vida” de Carlos Mendes em 1972. Um sétimo lugar repetido por José Cid em 1980 com “Um Grande Amor”, quase igualado em 1991 por Dulce Pontes (“Lusitana Paixão”) e 1994 por Sara Tavares (“Chamar a Música), ambas em oitavo, e superado pelo sexto de Lúcia Moniz em 1996 em Oslo com “O Meu Coração Não Tem Cor”, uma composição do maestro Pedro Osório com letra de José Fanha.
Desde que se tornou viral nas redes sociais, “Amar pelos Dois” subiu do 15.º ao segundo lugar no site Eurovision World, a bolsa internacional de apostas à vitória. À partida para a semi-final, apenas “Occidentali’s Karma” de Francesco Gabbani, de Itália – crónica candidata à vitória –, reunia mais preferências. “O mundo está a apaixonar-se pelo melhor candidato português de sempre”, lia-se na edição inglesa do Metro. “A canção poderia ter sido vencedora da Eurovisão nos anos 1950, assim como pode ser a vencedora em 2017”, explicava ainda o jornal, referindo-se ao tom clássico da interpretação jazzística.
Salvador introduziu-se no mundo da televisão em 2009, quando deu voz a clássicos no concurso “Ídolos”: “For Once in My Life” de Stevie Wonder e “I Got a Woman” de Ray Charles. Quando lhe foi pedido para cantar em português, escolheu voltar atrás a“Cavaleiro Andante” de Rui Veloso, de um ano depois de Portugal ter aderido à CEE e dois antes de nascer.
Oito anos depois de ter participado e sido eliminado de “um programa que não é de música” mas antes de televisão, disse, Salvador Sobral é um misto de D. Sebastião e Éder. Candidato a glória nacional e a voz da esperança na apoderação de um troféu nunca antes conquistado, capaz de deixar um país em suspenso no fim-de-semana da visita do Papa Francisco e do possível tetra do Benfica. Há Fátima e futebol garantidos. À falta de fado, fé não falta na voz representante da nação. E ainda pela letra F, é uma figura frágil aquela que transporta Portugal na voz.
Os problemas de saúde foram negados logo após ter vencido o Festival da Canção mas confirmados após notícias insistentes. “Esta doença que tenho é um problema pequenino e, na verdade, será o único problema que tenho na minha vida”, confessava entre a tragédia e a ironia no mesmo “Alta Definição”. O problema de saúde tem a dimensão de um transplante de coração que ainda aguarda e o impediu de viajar mais cedo. Salvador Sobral só chegou a Kiev no domingo. A irmã Luísa representou-o nos ensaios preparativos para a cerimónia.
De sorriso tímido, barba rala, cabelo comprido apanhado; imagem despreocupada; e um discurso consciente e informal, o homem de quem se fala é popular à dimensão de um país mas tem o ar mais comum do mundo.
Até ao Festival da Canção não esgotava sequer as salas onde atuava. No ano passado, editou o inaugural “Excuse Me”, gravado com a ajuda na produção do pianista Júlio Resende. O disco passou quase despercebido. Para trás, ficavam anos de insistência e desistência. Após ter sido eliminado do programa “Ídolos”, parou de cantar. Enquanto fazia Erasmus em Maiorca, juntou-se a um guitarrista de blues. Os dois faziam dinheiro com repertório de Ray Charles a Stevie Wonder. Em Barcelona, frequentou a escola Taller de Músics. Salvador Sobral seguia as pisadas académicas da irmã Luísa, dois anos mais velha e a maior de todas as referências. Nas aulas, ficou obcecado por Chet Baker. Do embaixador da “coolness” e lenda do jazz quis saber tudo. Discografia, biografia e cinematografia.
Numa festa da escola, apresentou-se pela primeira vez ao público ainda com oito anos. Aos dez, imitou “O Negro do Rádio de Pilhas” no programa juvenil “Bravo Bravissimo” da SIC. Salvador Sobral é a personificação de alguém que nasceu para a música e tentou várias vias para chegar onde está hoje. Foi Luísa Sobral quem lhe telefonou a dizer que tinha escrito uma canção para o irmão cantar. E ao aperceber-se que o perfil dos concorrentes este ano seria diferente, aceitou o desafio.
“Ela mandou-me a música. Achei-a lindíssima, não dava para dizer não”, explicou à “Notícias Magazine”. ”Pensei logo que gostava muito de ver o meu irmão a interpretar uma canção minha, porque acho que ele é um cantor extraordinário e porque me dava imenso gozo vê-lo no Festival da Canção e que acabasse por ser uma coisa de família. Acho giro estarmos os dois nisto”, completou Luísa Sobral à “Sábado”.
Aconteça o que acontecer, “Amar pelos Dois” é a bandeira musical de um país. Resta saber se paga dívidas europeias.