Afinal de contas Jean-Luc Godard veio a Cannes

Jean-Luc Godard será provavelmente dos cineastas mais reservados. Apesar de estar há já algum tempo a terminar o seu próximo projeto não gosta de aparecer. Este ano apareceu, mas não na forma como muitos desejavam. Ainda assim, na versão ligeira, e mesmo divertida, como personagem do último filme de Michael Hazanavicius, Le Redoutable. Será que é um…

A 70ª edição está a ter alguma concorrência por parte de alguns eventos laterais que lhe roubam algum protagonismo. Depois da bronca com a projeção de Okjaı, o projeto da Netflix, antes da sessão de Le Redoutable, o tal filme sobre o cineasta Jean-Luc Godard, foi adiada durante mais de meia hora devido a uma suposta de ameaça de bomba, motivando um pequeno exército de seguranças a forçar a multidão de jornalistas que esperava à entrada a afastar-se. O evento acabaria por ser sanado com a intervenção do delegado-geral do festival, Thierry Frémaux. Aparentemente, segundo foi ventilado, teria sido um saco deixado por alguém na sessão anterior…

Após este aperitivo que foi levado de bom ânimo pela maior parte dos presentes, acabamos por ter um prato forte no mesmo estilo de bom humor com o muito aguardado Le Redoutable, a visão da vida em comum de Juan-Luc Godard e Anne Wiazemsky, a jovem atriz e 17 anos protagonista de La Chinoise (interpretada com vivacidade por Stacy Martin), com quem depois Godard casaria e viveria até ao fim da aventura fortemente politizada que teve com o grupo de produção comunitária Dziga Vertov.

Michael Hazanavicius, o autor do brilhante O Artista, serviu-se da biografia de Wiazemsky, intitulada Un An Après, para nos oferecer uma quase caricatura do realizador cinéfilo composta com assinalável brio por Louis Garrel. E onde o ator profere até esta frase: "Eu não sou o Jean-Luc Godard, sou um ator que faz de Godard", mas para explicar como ele havia encarnado esse feroz animal político. Temos então um Godard a viver o seu momento de reconhecimento, embora empenhado num aceso combate político de inspiração maoista e apresentado quase como instigador do movimento das ruas e de protesto de Maio de 1968. Apesar de tudo, não deixa de ser interessante a forma bastante próxima como Garrel incorpora a sua persona e diálogos fulminantes, talvez com a excepção do adorno capilar, incluindo mesmo o ligeiro ciciar da voz de Godard. Seja com os frequentes gags dos óculos que se partem e deixam o realizador míope quase sem ver, ou os comícios em universidades onde a sua formalidade militante recebe também o protesto dos presentes. A culminar até num encontro com o amigo Bernardo Bertolucci, que acaba mesmo numa crise entre ambos. O filme conta ainda com a presença de Bérénice Bejo, esposa do realizador, e presença regular nos seus filmes.

Talvez essa seja até uma forma de criar um filme sobre Godard, ou seja, sem cair na cinéfila pura e afastar assim potenciais espectadores. Só que o reverso acaba também por ser uma espécie de JLG para totós, já que apoiada nessa superficialidade caricatural, como se o autor de O Desprezo – cuja imagem ilustrou o anterior cartaz do festival de Cannes -, fosse encarado como uma figura colorida e iconoclasta. De resto, o filme não esquece o famoso boicote que Godard e Claude Lelouch fizeram na edição desse ano de 1968 do festival de Cannes, logo após a exibição restaurada de E Tudo o Vento Levou, em que o cineasta tomou o palco para anunciar que teriam de suspender o evento para se solidarizarem com a luta estudantil nas ruas de Paris.

Resta acrescentar que o título Le Redoutable é o nome do primeiro submarino nuclear francês que motiva uma música que Godard e Anne cantam no início, talvez a afirmar o poder explosivo do seu cinema. E talvez esta opção de comédia ligeira seja mesmo a forma possível de mostrar uma das facetas deste realizador que ainda hoje não encontrou substituto para um cinema verdadeiramente revolucionário e inovador. Resta saber se é nessa versão de cinema de entretenimento que o verdadeiro JLG melhor se revê.