Para quem pensa que estar no Festival de Cannes é viver la vida loca, ver filmes em estreia mundial, privar com as estrelas e dançar até às tantas nas festas das Croisette, prepare-se para uma dura verdade. É que, para além da dureza de dormir um número insuficiente de horas, apenas com o recurso a doses regulares de cafeína, o jornalista que não chegar antes das 8 da manhã à sala Lumière, com espaço para dois mil lugares, arrisca-se a não entrar. Vendo a coisa pela positiva, resta-lhe tomar lugar na fila correspondente ao seu cartão (rosa, para os diários tem alguns privilégios, mas há melhor), como se estivesse na sala de embarque, embora ao ar livre, num aeroporto. Ultrapassada a zona de segurança, retirando tudo dentro do saco, mas deixando a maçã que ia ser o seu almoço e a garrafa de água, vai repetindo um obrigatório “bon jour” a cada segurança que passa, e dirá mais outras dez vezes até ao cimo das escadas da passadeira vermelha até ocupar um lugar vago na sala. Educação francesa oblige. Atenção, ninguém se está a queixar… Só quando os filmes não nos retribuem esse esforço na qualidade desejada.
Foi o que muitos acharam na sessão de abertura, com Les Fantômes d’Ismael, o tal filme em que o cineasta francês Arnaud Desplechin, um habitué de Cannes, elabora um articulado de filme dentro do filme, disfarçado de vários géneros, para narrar a insólita trama que atravessa o trio de protagonistas Mathieu Amalric, Marion Cotillard e Charlotte Gainsbourg, todos eles à procura de um corpo perdido. Ele é um cineasta que procura lidar com o regresso da namorada (Cotillard) que fora dada como morta há duas décadas, ao mesmo tempo que vive uma nova relação (Gainsbourg). Há um lado excitante de não sabermos exatamente se estamos a ver um filme ou a realidade, embora essa sensação não seja isenta de alguma dispersão. É quase como tentar ver o lado figurativo num quadro de Jackson Pollock, como sugere uma personagem, ao afirmar que naquele emaranhado de formas existem vários quadros. Nestes diversos filmes também existe um, não é mau, mas é mais pequeno que a soma de todos.
O americano Todd Haynes também nos sugere emoções inesperadas, em Wonderstruck, e permite-se até transmitir algum tipo de conhecimento através de um filme que sabe ser, de uma forma, sensorial. Esta ideia cresceu em nós durante a sessão em que o realizador americano explora de uma forma original a barreira da linguagem, ao mesmo tempo que usa o som e o silencio como ferramentas enriquecedoras, aproveitando nesse percurso por criar uma imagem vívida entre a passagem do cinema mudo e o sonoro. Se a isto aliarmos a circunstância de que algumas personagens perderam o dom da audição, percebemos como esta complexidade pode originar quadros cinematográficos saborosos.
A história oscila entre o final dos anos 20, em Nova Iorque, mais concretamente em 1927, quando o cinema mudo começava a receber as primeiras alterações para a revolução do sonoro, com uma menina muda que vive obcecada pela mãe, uma estrela do cinema mudo, com composição de Julianne Moore; e ainda meados dos anos 70, quando um rapaz perde a audição após ser vítima de uma descarga fulminante de eletricidade após um raio ter tocado a antena da casa. Ela que vibrara com a mãe, ele à procura do pai, já depois da perda da mãe (Michele Williams, numa curta presença).
Já sabíamos que Haynes é primoroso na reconstituição de época – fê-lo sem mácula em grande parte dos seus filmes, e em particular, Longe do Paraíso, onde recriou um original de Douglas Sirk, sempre com Julianne Moore, ou ainda no recente e celebrado Carol, nomeado aos Óscares. A Wonderstruck também já se associou essa possibilidade.
Deixamos para o final, o melodrama familiar Loveless, do russo Andrey Zvyagintsv, o autor do brilhante Leviatã, que nos fala das feridas profundas do desamor. Ele que é, possivelmente, o mais interessante cineasta russo, a abordar aqui o relato sobre a desagregação familiar na atual classe média de Moscovo. No meio da depressão económica, o realizador alia também a depressão pessoal de todos aqueles agarrados a uma vida sem um rumo em que cada um procura a satisfação pessoal.
Em particular, um casal em rutura a quem o desaparecimento do filho pré-adolescente os remete para a novidade de uma dolorosa investigação e procura. A interrogação para o que lhe sucedeu agrava a amargura e uma desagregação que não vê solução.
Apesar de menos empenhado do ponto de vista político, como sucedia no anterior Leviatã, já estreado no nosso país, este Loveless adianta mais espessura e maturidade num nível da desestruturação social e familiar da atual sociedade russa.
Num mundo perfeito, o jornalista seguiria para as tais festas glamourosas. Mas a realidade é bem mais fria – há que ingerir algumas calorias (e cafeína) para acabar o dia. É que no dia seguinte há mais.