Tudo o que sobe começou no solo. E tudo o que voa alto desce um dia. É a ordem natural dos acontecimentos. Da vida só se tem a certeza da morte, mas a partida de Chris Cornell causou surpresa, no tempo e na forma.
Segundo Kevin Harris, amigo e antigo roadie dos Soundgarden, “ele estava limpo há anos”. E a viúva, Vicky Cornell, desconfia da tese de “suicídio por enforcamento”. Em declaração escrita, levanta suspeitas sobre a consciência do ato terminal. “O que aconteceu é inexplicável e espero que os relatórios médicos deem mais detalhes. Sei que ele amava os nossos filhos e não os magoaria ao tirar a própria vida intencionalmente”, defendeu, relatando uma chamada telefónica suspeita. “Quando me disse que tinha tomado um ou dois Ativan extra, contactei a segurança e pedi que fossem ver como ele estava.” Ativan é um medicamento para a ansiedade usado geralmente por dependentes de programas de reabilitação. “A família acredita que, se o Chris se suicidou, não sabia o que estava a fazer, e drogas ou outras subs-tâncias podem ter afetado as suas ações”, alertou o advogado da família, Kirk Pasich.
A cultura popular em geral e o rock em particular sempre se alimentaram de mitos e lendas. Se fosse necessário um argumento para alimentar próximos capítulos, ele aí está. O que não pertence ao domínio da ficção é a relação entre a cidade e a sua banda sonora.
Enquanto figura musical, o grunge nunca existiu; foi, sim, um movimento de bandas de rock à procura de um lugar abrigado debaixo da chuva dissolvente. Em Seattle é inverno o ano inteiro. O resultado musical não podia ser alegre ou festivo. “Black Hole Sun”, o hino dos Soundgarden de 1994, fala do clima chuvoso e foi usada como metáfora do vazio deixado por Kurt Cobain – “Black hole sun/ Won’t you come/ And wash away the rain” – entre outras referências ao símbolo maior: “Hear you scream again” e “No one sings like you anymore”.
Cobain simplificou depois o que Cornell complicava desde o começo. No princípio, era a Sub Pop, editora e quartel- -general do grunge, para a qual gravou quase toda a gente durante os dias da independência.
As placas no cemitério são extensas. Andrew Wood, ícone antes de o ser, foi o primeiro a sofrer uma overdose de heroína, em 1990; Kurt Cobain suicidou–se em 1994; Layne Staley foi encontrado morto em 2002, mas já perdera a luta com a heroína muito antes. E Chris Cornell ainda viveu o tempo suficiente para reunir os Soundgarden e os Temple of the Dog, mas depois de rematar um concerto em Detroit com o refrão subliminar de “In Time of Dying”, dos Led Zeppelin, pôs uma corda ao pescoço e…
São os casos mais conhecidos de relação entre o rock e o abismo, mas não os únicos. Mia Zapata dos The Gits (1993), Kristen Pfaff das Hole (1995) e Mike Starr dos Alice In Chains (2012) também ficaram pelo caminho. Só não tiveram o mesmo impacto mediático dos símbolos de uma cidade de onde também vieram Ray Charles, o produtor Quincy Jones e Jimi Hendrix, que precisou de ir para Inglaterra para o mundo gostar dele. Apanhados pelo clima, é certo, mas também por uma América apática à espera de raiva para acordar do tédio.
Resta Eddie Vedder, filho adotivo desde que voou de San Diego para um teste nos Pearl Jam, depois de a banda ter ficado impressionada com as qualidades demonstradas numa cassete enviada por correio.
Vedder e os Pearl Jam são a água deste vinho e foram muitas vezes olhados de lado no movimento por terem divergido do estreito eixo de drogas e rock’n’roll. “Eles são uma banda de rock segura. São uma banda de rock agradável de que toda a gente gosta”, contestava Kurt Cobain, para quem era “ofensivo ser metido no mesmo saco de bandas como os Pearl Jam”, lia-se nas páginas de “Your Favourite Band is Killing Me”, do crítico de rock Steven Hyden.
Era conhecida a rivalidade alimentada por Kurt Cobain, mas o contrário já não é verdade. “Quando os Pearl Jam chegaram primeiro à capa da ‘Time’ que os Nirvana, o Kurt ficou bastante chateado”, chegou a contar Courtney Love, mas à medida que as canções dos Pearl Jam amoleciam em pedra dura, a voz outrora à espera de ser ouvida era afinada num outro tom.
E se, para alguns, Eddie Vedder e os Pearl Jam são o último bastião, para outros já não representam o primado da revolta. A morte de Cornell pode bem ser o último prego no caixão grunge.