Se John Fitzgerald Kennedy é, ainda hoje, um dos rostos de referência do Partido Democrata norte-americano, não deixa de ser curioso que figuras da direita contemporânea dos Republicanos continuem a prestar-lhe homenagem cem anos depois do seu nascimento.
Ted Cruz, por exemplo, da ala direita do Partido Republicano – ou, como os americanos lhe chamam, o ‘Grand Old Party’ (GOP) – refere consecutivamente Kennedy como uma das suas referências políticas, ao lado de Ronald Reagan ou Barry Goldwater.
Não deixa, então, de ser irónico que a direita americana de hoje, que fez tudo o que podia (e não podia) contra a presidência de Barack Obama, tenha tamanha adoração por uma personalidade que serviu sob o mesmo partido de Obama – os Democratas.
Quem acusava o antecessor de Donald Trump de ser excessivamente à esquerda, recorda com saudade os discursos de Kennedy ao lado das presidências de grandes vultos da direita, como Reagan. Um mito do centro-esquerda e um pai do ‘neoliberalismo’, juntos como referências da direita de hoje. Quase bizarro, não? Talvez nem por isso.
Também não deixa de ser irónico que os referidos Democratas, da esquerda americana, sejam capazes de venerar desde Franklin D. Roosevelt, um ‘keynesiano’, a John F. Kennedy, um liberal-conservador, terminando em Barack Obama – o homem que disse que quem estivesse “contra a economia de mercado está também contra mim”.
O facto é que toda a gente cita JFK, à esquerda ou à direita, nos Estados Unidos ou fora deles. Talvez tivesse optado pelos Republicanos, à direita, se o pai e a restante família não tivessem já ligações aos Democratas. Mas essa polivalência partidária do legado de Kennedy tem uma explicação.
Se as considerações ideológicas e até partidárias tendem a prescrever após o mito – isto é, à conversão em mártir político – JFK enquanto agente político poderia hoje ser considerado como a esquerda da direita ou como a direita da esquerda. O ‘centrismo’, isto é, a moderação programática, é sempre mais fácil quando se possui habilidades carismáticas – e ele é recordado por isso mesmo – mas havia mais que isso.
Em janeiro de 1961, no seu primeiro discurso oficial como presidente e após vencer Richard Nixon, John Kennedy – ou Jack, para os amigos – proferiu a seguinte frase, logo no segundo parágrafo, referindo-se aos Pais Fundadores: “Os mesmos valores pelos quais os nossos antepassados lutaram ainda estão por todo o mundo. A crença de que os direitos dos homens não vêm pela generosidade do Estado, mas pela mão de Deus”.
Os “direitos” não vêm pelo “Estado”, mas por “Deus”, disse Kennedy depois de se tornar presidente de um partido que nem é considerado direita. Uma frase que, hoje, seria indizível, em Portugal ou até na América por quem almejasse realmente a governar.
É a mesma lógica de “Fé e Liberdade” por qual os mais radicais membros do Tea Party republicano se regem: o Estado Social não pode dar a todos, Deus (ou a natureza humana) tem ainda um papel na organização da sociedade.
Hoje, seria um reacionário. Em 1961, era presidente dos Estados Unidos da América.
Preocupações sociais e direitos civis Não deixa de ser evidente – e factual – que Kennedy abriu uma porta no que toca aos direitos civis. Preocupações de inclusão social, concretizadas pelo vice-presidente que herdou o seu cargo após o assassinato em Dallas, Lyndon Johnson, também eram suas.
Na altura, o facto de Washington se sentir ameaçada pela preponderância da União Soviética também influenciava, naturalmente, um discurso civil mais alérgico ao papel do Estado – que era protagonista do sistema político de Moscovo.
Esse lado anti-socialista do falecido e, se quisermos, mais conservador no que diz respeito ao papel do Estado, derivava não só das circunstâncias geopolíticas do Ocidente – afinal, estávamos em plena Guerra Fria – como também do catolicismo de JFK e até da sua relação de amizade com o infame senador McCarthy, que perseguiu cidadãos americanos associados ao ativismo marxista.
Kennedy não deixou, no entanto, de dizer, até no mesmo púlpito, que o mundo estava “diferente”. Que em 1961 estava apenas “nas mãos dos mortais, o poder de abolir todas as formas de pobreza humana”, como também não deixou de garantir que um afro-americano integrasse a guarda pessoal de um presidente pela primeira na história dos EUA.
Com a eleição de Emmanuel Macron em França, este ano, a imprensa internacional de referência não resistiu ao paralelismo com JFK: a Europa descobrira o seu Kennedy. O carisma, a boa imprensa, a adoração feminina e a juventude justificavam a alegoria, mas do ponto de vista político há mais que isso.
Se Kennedy conseguia também pensar como conservador, sendo um progressita, ou vice-versa, Macron vem de um Partido Socialista mas nunca se diz socialista, tendo seduzido muito do centro-direita francês. A comparação justifica-se porque o ‘centrismo’ – entre as ideologias – que JFK popularizou é o centrismo que Macron ressuscitou.
Nós, por cá, temos Marcelo Rebelo de Sousa. À esquerda da direita, à direita da esquerda. O sucesso eleitoral foi o mesmo.