O Brasil está afogado numa crise política de proporções gigantescas, mas Michel Temer mantém o tom e garante que não vai largar o poder tão cedo. “Se quiserem derrubem-me”, foi o desafio lançado pelo presidente do Brasil – sobre cujos ombros recai uma investigação pela alegada prática de crimes de corrupção passiva, obstrução à justiça e organização criminosa, aberta na sequência da delação dos empresários da JBS – numa entrevista à “Folha de São Paulo”, no início da semana, e sobre o qual tem pautado a sua postura, desde que foram reveladas gravações que sugerem que terá tentado comprar o silêncio do ex-líder líder da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, detido no âmbito da Operação Lava Jato.
Prometida tal posição irredutível, o chefe de Estado brasileiro e o seu governo têm feito de tudo para regressar à normalidade, pelo que foi nesse contexto que, ontem, tentaram avançar com a votação de nova legislação, na Câmara e no Senado. Mas lá fora, na Esplanada dos Ministérios de Brasília, milhares de pessoas transformavam um cenário onde deveria ter tido lugar uma manifestação pacífica – convocada pelos movimentos sociais e sindicais, não apenas em protesto contra a insistência do presidente em manter-se agarrado ao cargo, mas também contra as reformas da Previdência social – num verdadeiro palco de guerra.
Os manifestantes atearam fogo às casas de banho públicas e às paragens de autocarro daquela área, atiraram garrafas e pedras contra a polícia, e conseguiram invadir as zonas de acesso aos edifícios de seis ministérios, obrigando à sua evacuação. No ministério da Cultura foram roubados e danificados computadores e documentos oficiais e no da Agricultura deflagrou um incêndio de grandes proporções.
A estes atos de vandalismo – que duraram umas longas quatro horas – a polícia respondeu com gás lacrimogéneo, gás de pimenta, e tiros de bala de borracha. E, segundo o jornal “O Globo”, houve mesmo agentes da polícia que dispararam armas de fogo contra os manifestantes.
O balanço final apontava para 49 feridos, oito detenções e incontáveis estragos materiais, só em Brasília, já que no Rio de Janeiro e em São Paulo também foram registados confrontos entre manifestantes e a polícia.
Solução gerou tensão
Com o sonho do regresso à normalidade lançado para a lama nas ruas da capital do Brasil, mas também dentro do Congresso – os deputados trocaram insultos na Câmara e protagonizaram um bate-boca digno de uma autêntica disputa de claques de futebol, com cânticos de “Temer na cadeia” a serem respondidos com urros de “Lula na cadeia” – Temer e o governo decidiram responder com medidas drásticas: aprovando um decreto de autorização ao destacamento das Forças Armadas, com o intuito de manter a ordem e conter a violência na capital.
Se decisão em si já seria reveladora da posição frágil em que se encontra o executivo brasileiro, a onda de reações à mesma, junto no seio da oposição e da própria coligação política que suporta Temer, não poderia ter sido mais prejudicial para a imagem de tranquilidade que o governo pretende transmitir. Desde logo porque o ministro da Defesa, Raul Jungmann, atribuiu ao presidente da Câmara a responsabilidade pelo chamamento dos militares, uma realidade que foi negada, de forma veemente por Rodrigo Maia, do DEM, um partido aliado de Temer e do PMDB. “A decisão tomada pelo governo certamente tem a ver com aquilo a que entendeu relevante para garantir a segurança”, defendeu-se aquele, citado pela Carta Capital, garantindo que apenas pediu ao executivo o apoio da Força Nacional de Segurança Pública.
Para além do aparente desentendimento sobre quem teve a ideia de pedir ao presidente o destacamento de 1500 militares para patrulharem as ruas de Brasília, as críticas focaram-se igualmente na solução encontrada. Diversos deputados do PT acusaram Temer de estar liderar “um regresso à ditadura militar” e mostraram-se indisponíveis para “compactuar” com tamanho “retrocesso” na democracia brasileira. A indignação estendeu-se também a alguns representantes de partidos aliados do governo e Renan Calheiros, senador do PMDB, que já tinha criticado Temer anteriormente, veio mesmo dizer que “se o governo não se sustenta, não são as Forças Armadas que o vão sustentar”.
Certo é que a presença dos soldados na capital, inicialmente prevista até ao dia 31 de maio, durou menos de 24 horas. Pressionado pela insatisfação de Maia e dos deputados mais críticos que apoiam as cores do governo, Temer decidiu revogar hoje o polémico decreto, com base “na cessação dos atos de depredação e violência”.
O presidente volta, assim, a colocar mais fichas no regresso à normalidade, mas contra si jogam o agendamento de novos protestos por todo o país e a eventual abertura de uma ferida, dentro da coligação, pela forma como foi gerido o processo de contenção dos protestos de quarta-feira à noite. Para além disso, aumenta a olhos vistos a crença, entre a população e a classe política, de que a sua queda é “inevitável”. E, entre amigos e inimigos, já há quem prepare o pós-Temer.