A greve da Função Pública

A conservatória do registo civil da avenida Fontes Pereira de Melo já se tornou um caso patologicamente conhecido dos lisboetas. Entrar lá é como ser sugado por um buraco negro. 

São horas de espera, sem ar condicionado, por entre dezenas de pessoas que se amontoam, algumas com crianças, tendo de ouvir conversas ao telemóvel que detalham escatologicamente a vida de cada um. 

Quando finalmente chega a nossa vez, na bancada de trabalho dos funcionários está à nossa disposição, para assinar, uma petição contra a mudança destes serviços para o Parque das Nações – mudança que é pintada como o degredo para a Austrália no século XIX. O Parque das Nações é anunciado como o fim do mundo. 

Estive há dias nesses serviços do Parque das Nações. Passei horas à espera da minha vez, tal como outras dezenas de cidadãos, na fila para o registo civil – mas na bancada ao lado meia dúzia de funcionários não fazia nada. Tinham um ar alheado, distraído, conversavam, riam, brincavam com o telemóvel. Perante a visão de uma sala em open space em que ao lado de uma série de funcionários atolados em trabalho, esforçados e a trabalhar, havia uns quantos entregues ao dolce far niente, mandei chamar a responsável.

A conservadora explicou-me que o trabalho estava dividido por especialidades. Os funcionários cheios de trabalho eram os do registo predial, do registo automóvel e do registo civil. Os desocupados eram os que faziam registo comercial, letras, livranças e heranças. 

Perguntei-lhe o óbvio: se achava normal ter na mesma sala funcionários públicos a trabalhar e outros sem fazer nada. Voltou a responder-me que eram grandes especialistas e só podiam fazer registo comercial, letras, livranças e heranças. A conversa não correu bem, desde logo porque não existe tal especialidade, como devem imaginar. A conservadora acabou a quase admitir que não os conseguia forçar a fazer mais nada. 

O que mais me chocou naquela situação não foi o total desperdício de funcionários desocupados. Chocou-me ver refletido naquela sala o estado da economia, com especial peso para a compra de imóveis e de carros — e a administração pública não se conseguir adaptar, muito menos dar resposta, às pessoas, à sociedade, à economia. 

Chocou-me igualmente a iniquidade de tratar funcionários públicos de forma tão desigual e injusta. Uns são filhos, outros são enteados, sabendo nós que tal estilo de gestão de recursos humanos mina qualquer local de trabalho e a produtividade.

Esta semana houve uma greve da Função Pública. Se for para trazê-la para o século XXI, contem comigo. Se for para a manter no século XIX, ou seja, no tempo do funcionário público especialista em letras e livranças, esqueçam.