Este escarnecer coletivo omite a regra tradicional de protocolo do Vaticano durante audiências papais privadas, segundo a qual a maioria das mulheres usa vestido de mangas compridas e véu pretos. Basta uma pesquisa rápida pelos arquivos fotográficos para encontrar Hillary Clinton ou a Princesa Diana trajadas de igual forma à atual primeira-dama americana.
Para além desta fotografia, houve ainda outros momentos igualmente vazios de conteúdo mas plenos de gáudio instantâneo: a recusa de Melania Trump em dar a mão ao marido; o globo misterioso na Arábia Saudita; ou mesmo as imagens televisivas em que Trump se catapulta para a photo-op na cimeira da NATO. Tudo oco em termos de mensagem. Ficamos na dúvida se estamos a ser instrumentalizados nesta avalanche icónica ou se estamos ativamente a nos desobrigar do que realmente importa.
Nem a impossibilidade de esquecimento na internet parece ajudar uma sociedade com cada vez menos memória. E enquanto a primeira tournée internacional do novo Presidente americano teve realmente muito pano para mangas relativamente a factos políticos relevantes – como, por exemplo. o tratamento de informação altamente sensível no combate ao terrorismo ou a temática das contribuições financeiras à NATO – constatamos que o maior interesse se focou naquilo que é literalmente mais acessório: a imagem.
Mas não deixa de ser pertinente assinalar um fio condutor: a obsessão da opinião pública com a indumentária feminina. Este automatismo coletivo de análise ao que as mulheres das comitivas presidenciais devem (ou não) vestir estabelece um assinalável padrão que diverge da necessária evolução no domínio da igualdade de género. E não só.
Elizabeth Currid-Halkett, professora universitária de políticas públicas, dedica-se ao estudo dos comportamentos da elite cultural que apelida de ‘classe ambiciosa’. O que a define não são somente os padrões financeiros mas antes o seu alto grau de educação, o que lhe permite maior resistência face a desequilíbrios económicos em comparação com pessoas menos cultas ou mais velhas. Currid-Halkett analisa os seus padrões de consumo de bens e serviços e constata que os americanos no topo 10% remunerativo gastam cada vez menos em carros, aparelhos de TV e utensílios para a casa. O que realmente procuram são adornos para o corpo, sobretudo aqueles relacionados com atividades físicas. É o culto do corpo e da aparência, paradoxalmente junto dos que mais investimento receberam para a sua educação. São as suas escolhas de consumo relativas a educação, saúde, parentalidade e aposentadoria que acabam por reproduzir riqueza e mobilidade social somente entre os ‘seus’, agudizando ainda mais as divisões de classe na sociedade.
Não admira, então, que se note um paralelismo entre a ‘elite cultural’, a quem os novos movimentos populistas declaram fazer frente, e a excessiva atenção dada por esta categoria estatística ao valor da imagem e do acessório da família presidencial, por exemplo. Cada escárnio a uma suposta falta de ‘senso’ estético dos Trump só cavalga ainda mais a divisão entre frentes sociais, e não só nos EUA.
Mas há esperança. A escolha pessoal dos blazers multicolores da chanceler Merkel deixou de causar debate público – embora somente agora em que se encontra na corrida para o seu quarto mandato. Foram precisos 12 anos à frente do Governo federal para dar por esgotado esse ‘tópico’.
O reino das aparências tem de dar lugar a uma democracia do conteúdo. Seja por uma matéria de igualdade de género, seja pela capacitação da mulher enquanto agente político, seja também para reduzir o próprio fosso entre as classes sociais.
Rubina Berardo
Deputada do PSD