Do outro lado da linha, a voz de Elza Soares não esconde o cansaço da longevidade e do desgaste de uma etapa final de montanha na curva de uma longa carreira sinuosa e no arame, mas ainda tem forças para responder às perguntas de Portugal em vésperas de quatro concertos em Portugal, animados por um álbum de remisturas com ligações transatlânticas à dupla da editora Príncipe formada por DJ Marfox e Nidia Minaj e ao francês adotado por Lisboa iZem.
As respostas são curtas e concisas, como mandam as regras da objetividade, mas só ouvir a voz miraculosa de Elza Soares do lado de lá do Atlântico, disponível e sem rede nas questões mais sensíveis, já é um sopro de vida. “É uma fase nova”, concorda. Uma bomba de oxigénio, acrescentamos.
“Quando fazemos um álbum, é para ser bem recebido mas não controlamos as reações”, comenta sobre a maré entusiasta gerada após o conhecimento geral de um álbum que espantou o mundo desde o verão passado e fez revolver um passado turbulento de maternidade precoce, violência doméstica, operações plásticas, uma relação com o Garrincha, um dos mais famosos futebolistas brasileiros da história, achincalhamento e reconhecimento da opinião pública, duetos, interpretações e até uma nomeação para os Grammy com o muito elogiado na época “Do Cóccix Até Ao Pescoço” (2002). Uma vida preenchida e relatada em “A Mulher do Fim do Mundo”, obra-síntese de olhos postos no futuro.
Elza Soares dá graças aos “músicos maravilhosos” pela cumplicidade num disco “completamente diferente” dos anteriores. “É música mais moderna”, defende. “A juventude gosta. Sinto-me muito feliz”, reconhece. Uma declaração que há-de repetir durante a entrevista e que diz bem do estado de graça por que passa.
Na montanha russa emocional está a glória de uma coleção de canções que se vêem ao espelho na vida e trazem dor, sofrimento, angústia e morte. Elza Soares, de quem se diz ter 78 anos (não confirmados), já perdeu cinco dos sete filhos. O último, Gilson, partiu, durante as gravações do álbum devido a uma infeção urinária. Quando a pergunta remexe na ferida, interrompe: “a dor é que me fez forte”, atira a seco. “É a luta que me faz avançar. Agradeço a Deus”. As frases são breves mas concentram litros de coragem na alma. “O que a faz correr até ao fim?”, insistimos. “Não sei explicar. É uma força que vem de dentro. É o trabalho. Andar para a frente. Cantar”. A música enquanto ato de terapia? “Talvez. É, talvez sim”.
Na véspera de regressar a Portugal, depois de uma passagem fulgurante pelo Vodafone Mexefest, prepara-se como uma atleta de competição para estar em forma. Os cuidados são necessários para enfrentar as milhas aéreas, as intermináveis horas de espera em aeroportos, os fusos horários, as diferenças de temperatura e, já agora, o desgaste natural de quem, noite após noite, se acomoda nos aposentos do palco. “Já não bebo nem fumo. Deito-me cedo. Sou como uma atleta. E sinto-me bem fisicamente”. Um bem-estar extensivo à voz, escurecida por quilómetros de cigarros mas bem resolvida com o passar do tempo. De facto, o concerto de 10 de Junhi no NOS Primavera Sound (18h30) permitir-lhe-á repousar a horas de um jantar em horário católico mas os restantes – Coliseu dos Recreios a 3 de Junho, Teatro das Figuras, em Faro, no dia 14, e Festival Raízes do Atlântico na Madeira, no dia 17 – não serão tão amistosos do regime imposto para se cuidar.
Dessa nova relação com o público, faz parte uma atividade regular nas redes sociais, com fotos e comentários na primeira pessoa. “É muito importante para sentir-me próxima das pessoas”, reconhece.
Voltamos à casa de partida. Se há conclusão a tirar d’”A Mulher do Fim do Mundo” é que a mulher ainda não chegou ao fim da linha. A primeira tentativa de Elza Soares gravar canções escritas por mão própria não podia ter sido mais bem acolhida. Não é preciso conhecê-la, basta ouvi-la, para compreender que se trata de um auto-retrato tirado a ferros de uma vida carregada. “Há muito tempo que queria que fosse assim”, assume com auto-confiança. Insegurança? “Pelo contrário”, esclarece.
No álbum de uma vida, há ir e ficar. De uma luta pela sobrevivência travada do lado obscuro da vida. De decadência, crueldade, obsoletismo e apocalipse. Tudo isto é triste e pode ser festivo. A banda sonora é samba ruídoso, rock desconstruído, música eletrónica com batida cardíaca e “soul”. Elza Soares concorda que “as canções podem mudar a vida das pessoas” e reconhece ser essa a ambição. Por isso, “é lógico” ter escrito letras terminais como “Maria da Vila Matilde” sobre violência doméstica e, ao longo da jornada, chamar a atenção para a luta feminista pela igualdade das mulheres na sociedade. “Era o momento certo para o fazer”, diz. Os elogios vindos de todo o lado não travam a defesa de causas. “Eu sou negra e tenho a certeza que a maior raça do mundo é negra também”, afirmou numa entrevista e subscreve agora ao i. “É assim que penso. Não tenho medo”, insiste.
Por razões de ordem natural, é possível que esta venha a ser a última digressão de Elza Soares mas o futuro ainda é um país distante. “Veremos. Para já, estou a viver”, sublinha. E neste regresso, uma saudação como aquelas que passam na rádio: “amo Portugal, tenho muito carinho por vocês. Umbeijo, querido”.