Sem aviso prévio e nenhuma outra indicação salvo os anos de desconforto mais ou menos mal disfarçado, uma frente de países árabes e de maioria muçulmana decidiu fazer esta semana o que há muito vinham pensando: isolar o pequeno, riquíssimo e rebelde Catar no seu já de si isolado canto do Golfo. Foi o inesperado – mas não surpreendente – eclodir de velhos desaguisados entre os monarcas e autocratas na região. Não há apenas uma razão para o bloqueio, os motivos declarados pelos seus autores parecem complicados jogos de espelhos e as consequências desta crise diplomática tanto podem ser transformadoras como passageiras. Tudo depende de como o emirado de Tamim Al Thani reagirá ao ver a sua única fronteira por terra cortada, os seus centros comerciais com longas filas de pessoas receosas da falta de alimentos, os seus cidadãos expulsos de vários países, os diplomatas de malas feitas e as pontes aéreas para países vizinhos completamente cortadas.
O emir parece por enquanto escolher a via do diálogo, aceitando cancelar um discurso que tinha previsto para ontem a pedido do monarca do Koweit, que, como um dos parceiros do Grupo da Cooperação do Golfo apanhados no imbróglio – Omã é o outro – ontem estava em Riade para negociar uma saída da crise. Resultou em 2014, numa primeira e mais ligeira tentativa de cortar laços com o Catar. Mas hoje o emirado tem a mão estendida do governo iraniano, que se dispõe a enviar remessas de comida e outro material. Aceitá-la pode revelar-se uma provocação inaceitável para os sauditas.
O bloqueio é manobrado pela Arábia Saudita, o mais próximo e descontente vizinho do Catar, que mobilizou o Egito, os Emirados Árabes Unidos, o Bahrain, pelo menos um dos governos concorrentes na Líbia, o executivo em guerra civil do Iémen e as Malvinas, entradas ontem no isolamento. Estes países justificam o corte argumentando que o Catar é um perigo para a estabilidade por não renegar o Irão e continuar o financiamento a grupos fundamentalistas e terroristas na Síria. Poucos contestam estas acusações.
Só recentemente o Catar começou a reformar as leis que lhe permitiram financiar grupos armados através de supostas organizações de solidariedade, por exemplo, que jorraram indiscriminadamente dinheiro para movimentos extremistas e milícias armadas em países como a Líbia ou a Síria, onde o Catar tem ligações com satélites da Al-Qaeda. O pequeno país também não fez segredo de investir nos grupos islamistas que começaram a brotar no mundo muçulmano desde a década de 1980, acreditando que no futuro seriam eles a mobilizar os crentes. Hamas, Irmandade Muçulmana e talibãs movem-se com facilidade por Doha. Tudo isto é verdade, bate certo com a justificação saudita, mas não explica a situação toda.
Também os Emirados e a Arábia Saudita abrem as suas bolsas para financiar movimentos extremistas na Síria e organizações fundamentalistas que operam na Europa e outras partes do mundo. A sua mão em grupos com perspetivas radicais do islão não se estende a movimentos políticos como acontece com o Catar, mas o essencial do seu desagrado parece dever-se aos receios com o ressurgimento do Irão, embora também tenha muito que ver com os anos de desconfiança de um vizinho que procurou sempre ter uma influência maior do que a sua dimensão e cuja importante cadeia de televisão Al-Jazira se mostra quase sempre disposta a dar tempo de antena a opositores sauditas e à Irmandade Muçulmana do líder egípcio deposto Mohamed Morsi.
As relações difíceis entre vizinhos são célebres e já tinham resultado num corte temporário de relações em 2014. Na altura, a intervenção dos outros parceiros do Conselho de Cooperação do Golfo fabricou um acordo segundo o qual o emirado concordava em expulsar alguns líderes da Irmandade Muçulmana e impedir a Al-Jazira de se referir ao golpe militar no Egito como aquilo que foi: um golpe. Para além disso, Al Thani cortaria no financiamento a grupos jihadistas e a meios de comunicação críticos das monarquias no Golfo. O Catar parece ter cumprido apenas parte das suas obrigações, os ressentimentos mantiveram-se e agora junta-se a incómoda proximidade iraniana, uma relação estratégica para um pequeno país que tenta maximizar o seu alcance e nunca se comprometer com um lado apenas do cisma geopolítico. Noventa por cento da população do Catar é sunita e as jogadas do emirado mostram como a divisão sectária não é o único motor político no Médio Oriente.
O ressentimento começou a ferver há semanas com a notícia num órgão de comunicação catarense e atribuída ao seu emir em que Al Thani criticava a agressividade dos países sunitas contra o governo iraniano. O emirado ainda recusou a validade da notícia, mas o dano estava feito. Um mirabolante resgate de membros da monarquia catarense pode ter sido a última gota de água (ver texto ao lado), mas a força que realmente pode ter escancarado as portas para um isolamento diplomático tão violento foi Donald Trump. De acordo com o próprio presidente norte-americano, a sua visita a Riade deu-lhe a ver que os outros chefes de Estado culpam o Catar pelo financiamento a grupos terroristas regionais. Ignorando as complicações que isso pode trazer para a maior base aérea americana no Médio Oriente – que é no Catar e de lá se coordenam os bombardeamentos na Síria e Iraque –, Trump colocou–se ontem do lado dos sauditas. “Isto talvez seja o início do fim do horror do terrorismo”, escreveu no Twitter.