Tivesse Pablo Escobar levado a melhor no desejo de se tornar presidente da Colômbia e mesmo o mais sanguinário e célebre narcotraficante do mundo ficaria vários passos atrás de Manuel Noriega, o antigo ditador do Panamá que morreu esta semana, aos 83 anos. Noriega ocupou menos uma década o autointitulado cargo de “Líder Máximo” do Panamá, mas fê-lo com a mesma grandeza macabra de alguns dos ditadores de grande longevidade do séc. XX, como Muammar Khadafi ou Saddam Hussein, por exemplo – os de hoje parecem ter sofrido um processo de gentrificação política que lhes permite, em todo o caso, operar no ambíguo terreno que separa o autoritarismo a descoberto da liderança por aclamação popular. Noriega nunca teve preocupações cosméticas com o seu regime de repressão. Discursava de machete na mão, atiçava milícias homicidas contra manifestantes e lançava opositores de helicópteros. Não se preocupou igualmente em esconder as faustosas festas alimentadas a cocaína e prostitutas, ambas nascidas dos negócios de droga. Essa desfaçatez custou-lhe o regime. Provocou demasiado os antigos amigos – e empregadores – americanos e acabou deposto à força no final de 1989. Com a sua queda se revelaram as feitiçarias que – acreditava Noriega – o preservariam no poder. As duas bruxas brasileiras que mandara vir para operarem o seu candomblé não o salvaram. Uma delas fugiu de cena com a invasão americana, que descobriu na casa de Noriega velas de vudu com os presidentes americanos e rivais políticos.
Noriega foi para o poder com mão americana e com mão americana abandonou-o. Noriega, que nasceu na Cidade do Panamá, em 1934, foi um bom aluno, mas não o suficiente para se tornar psiquiatra, como era o seu desejo. Escolheu em vez disso uma carreira militar que, desde muito cedo, teve a bênção da CIA – os serviços secretos americanos recrutaram-no em 1967, ainda na academia. Noriega ascendeu com rapidez no exército. Aproveitou as boas graças do golpe militar de Omar Torrijo, que governou até 1981, ano da sua morte num acidente de aviação que – como é habitual nos desastres deste tipo – está envolto em suspeita. Em apenas dois anos, Noriega eliminou a concorrência militar e concentrou em si o poder da Guarda Nacional, o exército panamiano, virando do avesso a ordem constitucional do país e assentando como seu ditador. A repressão e violência foram praticamente imediatas. Em 1985, o corpo do conhecido opositor Hugo Spadafora foi encontrado decapitado e mutilado num saco americano de correios. A repressão começou a inquietar alguns responsáveis americanos, mas Washington recusou-se a abandonar o ditador. Os serviços secretos precisavam de Noriega para as operações de apoio às milícias anticomunistas na Nicarágua, por exemplo, e temiam que um corte drástico com o general provocasse represálias contra os residentes e as bases militares no país. Cair nas suas más graças podia também afetar o Canal do Panamá – à data sob controlo americano. Pouco importava na altura que Noriega colaborasse com o regime cubano e a URSS, a quem vendia cada passaporte panamiano a cinco mil dólares.
Foi o tráfico que tramou o ditador. Na década de 80, os EUA estavam em plena guerra à droga, decretada por Ronald Reagan e fielmente levada a cabo pelo seu sucessor, George H. W. Bush. Noriega, por sua vez, operava em conluio com os grandes cartéis sul-americanos, a quem permitia enviar droga diretamente para os Estados Unidos desde os seus aeroportos. A animosidade entre Washington e a Cidade do Panamá cresceu, o procurador-geral acusou publicamente Noriega de tráfico de droga e o ditador cruzou a linha vermelha ao matar um soldado americano e ferir outros. A invasão durou poucos dias. Morreram 23 americanos e mais de 150 militares da Guarda Nacional. De nada serviram as cuecas vermelhas com que Noriega dizia querer afastar os «olhos do diabo».