Entre “Amused To Death” e “Is This The Life We Really Want?” há 25 anos, mas desse quarto de século só nove foram de abstinência. E quando Roger Waters regressou à estrada, em 1999, após 12 anos sem subir a um palco, aglutinou algumas das canções mais representativas do seu catálogo – de “The Wall” e “Dark Side of The Moon”, dos anos instrutivos dos Pink Floyd, de material a solo colecionado ao longo do ano e o inédito “Each Small Candle”.
No balanço entre a memória e o futuro, sempre disse “presente”. Escreveu “To Kill The Child”, sobre a invasão armada ao Iraque em 2003, e “Leaving Beirut”, um prospeto antiguerra inspirado pelas viagens ao Médio Oriente em adolescente. Também concordou em participar na episódica reunião de 24 minutos dos Pink Floyd no Live 8 (Londres, 2005) e escreveu a ópera em três atos “Ça Ira”, estimulada pela Revolução Francesa. De volta ao retrofuturo, a digressão “The Dark Side of the Moon Live” tirou o sexagenário de casa durante dois anos. Mais dois de intervalo e novo encore, com “The Wall Tour” nas arenas a partir de 2010.
Em 1973, os Pink Floyd usavam da ironia num dos versos mais populares da história do rock. “Money, it’s a crime”, troçava uma das canções emblemáticas de “Dark Side of the Moon”. A pop regurgita-se a si própria e, 40 anos depois, Waters escutava o som das moedas a pingar na caixa registadora com a cadência de um dilúvio em ano de inverno sem folgas.
No mesmo período criou cumplicidade com o produtor Nigel Godrich, o “sexto Radiohead”, banda que herdou ensinamentos dos Pink Floyd e aplicou conhecimentos em obras magnas como “Ok Computer”. Waters ficou impressionado com a ajuda no triplo ao vivo “The Wall” (2015) e chamou Nigel Godrich para produzir “Is This The Life We Really Want”, advertindo previamente não ter ouvido os Radiohead.
Verdade ou consequência, Waters sempre geriu a agenda ao sabor da vontade pessoal e, em mais de 30 anos divorciado dos Pink Floyd – a quem acusou publicamente de terem acabado em 1985 -, este é apenas o quinto álbum. Quarto se considerarmos “Ça Ira” o tal parêntesis orquestral, apesar das inquietações políticas e dos impulsos revolucionários serem comuns a uma linguagem, neste caso, ideológica.
“Só escrevi sobre uma coisa na minha vida, que é o facto de nós, como seres humanos, sermos responsáveis uns pelos outros, e que é importante criar empatia com os outros, que organizemos a sociedade para que todos nos tornemos mais felizes e consigamos a vida que realmente queremos. E a vida que realmente queremos é uma vida em que todos nós podemos educar os filhos para que eles e os nossos netos possam aspirar a uma vida melhor e mais produtiva (…) do que as vidas que somos forçados a viver agora, controlados como somos por muito poucos”, declarou em entrevista à “Rolling Stone”. De um só trago, Roger Waters respondeu à questão colocada no título e recentrou a problemática no mundo dos políticos e na divergência entre a sociedade civil e aquela que está, aparentemente, acima dela.
Ele, que perdeu o avô e o pai na i e ii guerras mundiais, respetivamente, sempre foi um crítico dos conflitos entre países, dos muros e das barreiras criadas entre povos e da forma como os países e as organizações políticas alimentaram guerras a mando de interesses ocultos. O tempo de Donald Trump na presidência é matéria-prima valiosa para usar a música a favor da reflexão e da consciência coletiva.
A caminho de completar 74 anos, não se rendeu à terceira idade e tem ainda uma palavra a dizer sobre a condição humana no mundo de hoje. Todos os detalhes parecem fazer parte de um puzzle. A capa é formada por um pedaço de texto censurado, onde apenas são percetíveis as palavras que formam o título. No livreto do disco, uma fotografia de Donald Trump com barras pretas, iguais às da capa, é legendada com a frase “a leader with no fucking brains”, retirada da canção “Picture That”.
O presidente americano já tinha sido o centro das atenções no México quando Waters lhe dedicou “Pigs (Three Different Ones)”, exibindo diversas caricaturas, criadas por artistas visuais, que o mostravam com uma metralhadora à porta da Casa Branca ou a fazer a saudação nazi. No final da canção, Waters recapitulou uma série de frases polémicas do então candidato, antes da estocada final em espanhol: “Trump, eres un pendejo” (”Trump, és um parvalhão”). Na tomada de posse do novo presidente erigiu um gigantesco porco insuflável onde se podia ler “que se foda Trump e o seu muro”, e montagens com elementos do Ku Klux Klan. Na mesma noite, Waters deixava o aviso: “A resistência começa aqui.”
Estávamos em janeiro e era apenas o prólogo. “Is This The Life We Really Want” adota o rock de combate como uma necessidade para responder aos problemas sociais de um mundo a sofrer de hemorragias internas.
Entre baladas e canções adultas, toda a agressividade é depositada no discurso. “The Last Refugee” descreve o drama dos refugiados que ficam pelo caminho – os que são derrotados pelas circunstâncias e aqueles que perdem o rasto à família. “Picture That” aponta o dedo a Trump com passagens como “There’s no such thing as being too greedy” e, à sexta canção, Waters sintetiza a visão global de um universo particular, relacionando o medo e a censura com as políticas radicais. A letra alude à Rússia de Vladimir Putin no verso “Every time a Russian bride is advertised for sale” e repete a menção desonrosa a Donald Trump. “And every time a nincompoop becomes the president”, escreve. Um “nincompoop” é um “pateta” em inglês.
As cenas dos próximos capítulos desinquietos continuam na estrada. Roger Waters está em digressão nos EUA e já extraiu uma mão-cheia de canções do novo álbum para um espetáculo que, a curto prazo, deverá chegar à Europa. Porque o palco “é viciante”.