NOS Primavera Sound. Afinal os indies não gostam só de indie

Da pop dramatúrgica de Rodrigo Leão e Scott Matthew à soul de armadura rock de Miguel, o hip-hop pungente dos Run The Jewels e a rave maximalista dos Justice, o concorrido primeiro dia de NOS Primavera Sound foi um reflexo da queda dos muros. 

O Primavera Sound chegou ao Porto faz agora cinco anos mas para trás havia mais de uma década de riscos assumidos em Barcelona. A ideia passada nos últimos anos de que se trata de um festival de música indie, ancorada no rock branco "alternativo" dos anos 90 é redutora para com a história do festival. 

Por isso, a aposta em contra-correntes plurais e assimiladas pela era digital da edição deste ano é o Primavera Sound a ser o Primavera Sound. E a primeira noite não só fez justiça à personalidade do festival como demonstrou que, na cabeça das pessoas, a mistura está assimilada.

Coube a Samuel Úria ser o primeiro a subir ao relvado do Parque da Cidade e a reverter "Molly's Lips" dos Vaselines, embora conhecido pela versão dos Nirvana, em "Os Lábios da Amália". O autor sempre esteve entre o bom e o óptimo, as canções é que cresceram muito. E quando o puxa pelas ancas no beijo atrás do pavilhão de "É Preciso Que Eu Diminua" com o samba, reconhecemo-lo de corpo inteiro, a dessacralizar trovas e a interagir que não só nasceu depois do PREC e "pede finos" ao balcão das redes sociais.

Vieram os Cigarettes After Sex, réplica árida dos Mazzy Star sem Hope Sandoval e sem um pingo de personalidade que mereça lugar na fila do registo civil. A banda mais fraca do dia.

Estava um belo dia cinzento quando o sol resolveu aparecer para espreitar a dramaturgia de Rodrigo Leão e Scott Matthew. Se o disco é o romance melancólico entre a pop de câmara do compositor e a dolência do australiano, o concerto tem outro peso e é inteligentemente pensado para um formato obrigatório de "chegar, ver e cativar", necessário num festival.

O músculo da bateria dá importância à secção rítimica e o calor do trombone, em despique permanente com o violino, empolgam estados de alma taciturnos e, para quem não esteja familiarizado com os dois, pode pensar que se trata de uma banda rock com um vocalista chamado Scott Matthew.

"Vocês devem estar a pensar quem é este tipo esquisito com o Rodrigo", ironiza. O australiano tem direito ao seu momento de versões, a sós, e acaba em êxtase com a leitura muito particular de "I Wanna Dance With Somebody" de Whtiney Houston.

"Life is Long", a primeira filha a dois, encerra um concerto perfeito para a hora. É hora de jantar sem olhar para o relógio porque um dos príncipes (de Prince) da soul moderna já se está a perfumar.

O NOS Primavera Sound não está habituado a isto e parece estranhar ao início. Um negro hispânico de coração perto da boca, acrobata vocal entre o rap e a soul, musculatura rock, programações eletrónicas, a puxar pelo público e a pedir "say yeahhhhhhhs". 

A misturada acabou por fazer sentido. Miguel, de primeiro nome, Pimentel, de apelido, sensual de cognome, foi a primeira prova provada da noite de que nem os indies estão prisioneiros do indie, nem o indie é um exclusivo branco, nem o NOS Primavera Sound é um festival guetificado num tipo de público ou tipologia sonora.

Não só o público reagiu como demonstrou conhecer singles como "Adorn" – o "Sexual Healing" dos tempos modernos -, "Waves" e a obra-prima matinal, sexo pós-ereção, que é "Coffee". Os Arab Strap satisfizeram a camada conservadora do festival, de seguida, mas guardado estava o bocado para os Run The Jewels, uma das bandas de rap prediletas dos hipsters.

El-P e Killer Mike recuperam o modelo clássico do rap de dois MC e um DJ. E basta. Os dois enchem o palco com um buliço permanente comandado por um discurso consciente e combativo, divergente do hip-hop ostentador e milionário que hoje faz escola.

O início é inesperado para a tradição do Primavera. Quem não os conheça, pode ficar surpreendido, ou mal impressionado, com a introdução ao som de "We Are The Champions" mas é pura ilusão.

Isto é rap, puro e duro, minimalista nas estruturas instrumentais e um DJ a riscar discos. O caso é grave e bate no peito. Lançam granadas dos três álbuns, como "Close Your Eyes (And Count To Fuck)", "Lie, Cheat, Steal", e "Down", pedem emprestado "Nobody Speak" a DJ Shadow, atacam os políticos (e Trump em particular nas entrelinhas), e recordam o concerto de há dois anos para beijar o Porto.

Para se ter uma ideia do quanto tudo isto mudou, na fila da frente há mulheres a cantar as letras do princípio ao fim. Entre as bombas, o público grita "RTJ! RTJ!" e a maré de gente perde-se da vista na encosta do Parque da Cidade. Lembram-se? 2014. Carruagens cheias desde o Algarve até ao Porto. Enchente no recinto de gente virgem no Primavera. Primeira vez de Kendrick Lamar em Portugal. Não foi assim tão diferente.

Há mais. Flying Lotus fez uma espécie de prólogo da apoteose final com Aphex Twin – momento histórico em festivais nacionais -, explorando artérias instrumentais, remisturas inéditas e vozes familiares em abstrações várias, e sem amarras, de hip-hop instrumental, soul tecnológica, house de Chicago, footwork, uma piscadela de olho ao livro de estilo da Príncipe, e o remate final com "Never Catch Me", e Kendrick Lamar a correr os 100 metros do verbo. E tudo isto, atrás de uma tela onde eram projetados visuais impressionantes, tipo screensaver elaborado e sofisticado. 

Através da verbalização sonora, o patrão da editora Brainfeeder, fundamental na reaproprição do jazz pela música popular de Kendrick Lamar e Thundercat, por exemplo, demonstrou a sua influência no som que hoje escutamos. Excelente. 

Olhar para os Justice em 2017 é fazer contas ao tempo. Já se fazem festas nostálgicas do maximal e artigos e relembrar os "bons velhos tempos" do "blog house".

Gaspard Augé e Xavier de Rosnay sabem que este já não é o tempo deles. Por isso, quase esquecem "Audio, Video, Disco" (2011) e omitem "Woman" (2016). Se um foi esquecido, o outro nem chegou a ser ouvido. 

Todas as fichas são jogadas na fase circa-2007. E "D.A.N.C.E" tem direito ao momento telemóvel da primeira noite, um intervalo pop entre a cultura do excesso proposto pelos gauleses.

Visualmente, o espetáculo é o mesmo de sempre. A parede de amplificadores Marshall é a imagem da potência rockeira aplicada ao house maximalista, pós-Daft Punk, construído sobre a herança de disco, funk e house.

O grande rio negro é amplificado numa rave aparatosa, dimensionada para grandes festivais. O "live act" dos Justice tanto pode recriar um clube, como permite imaginar estádios e grandes mobilizações populares.

Foi o caso. Ninguém se importou se aquela música ficou retida numa época, porque a potência desta música de dança é punk-rock suado, violento, e adequada à hora. E quando "We Are Your Friends", a remistura para os Simian mais popular que o original, rebentou do silêncio como um vulcão todas as peças encaixaram e o NOS Primavera Sound ficou completo no tempo e na forma.