"Mau dia para o Reino Unido. Bom dia para o Porto", disse e repetiu Jason Williamson, o megafone agitprop dos Sleaford Mods. Numa época em que a arte é dominada pela burguesia, há um ilhéu representar a classe operária.
Os Sleaford Mods podem recusar a associação mas as palavras têm demasiada força para não ser interpretadas dessa forma. Williamson contestava a eleição de Theresa May. E em bom calão, assinalou no marcador: "Porto One England Nil" para concluir que "England's Dead".
Por medo, incapacidade, ou anestesia geral quase ninguém do domínio da criação ousa pôr em causa os sistemas vigentes mas o terreno está propício a jogar ao ataque. E Williamson não é só um orador de primeira apanha como um performer capaz de encher o palco sozinho, já que o outro "mod" Andrew Fearn, passa uma hora a observar o colega e a carregar no botão. Mesmo assim, engana-se. Se viajar pelo mundo a ver concertos do cimo do palco não é o melhor emprego do mundo, então qual será?
Os Sleaford Mods foram desconcertantes na medida de um "T.C.R." ou de um "Jollyseeker". Bon Iver, o nome mais esperado na noite mais concorrida de sempre da história curta na duração mas extensa em memórias do NOS Primavera Sound, quis desafiar as leis da gravidade. Caiu.
O falhanço não surpreende, aliás. "22, A Million", o álbum que o trouxe de volta após longa espera em que Justin Vernon quis acabar com Bon Iver, é uma tentativa de dar luz a um ser parahumano movido pelas revoluções internas de Kanye West e a doçura de James Blake.
A produto da justaposição sai um Peter Gabriel pouco natural, em fuga de si mesmo e em fragmentos sonoros sem organização. Experimentar, sempre – Kanye West e James Blake são mestres da tentativa sem erro – mas com um propósito além do desejo de contestar o reconhecimento alcançado.
E, tempo de fascínio de algumas estrelas pop, como Beyoncé, ou em vias de o ser, como Frank Ocean, pela vanguarda, Bon Iver juntou-se-lhes na ilha dos perdidos; dos que não são Kanye West mas gostavam de ser. Iver deixou-se fascinar pelo auto-tune, pela maquinação aumentatitva dos limites do corpo mas a imaginação não o deixou ir além da vontade.
No enorme bocejo de quase duas horas recapitulou "22, A Million" e adicionou-lhe "Skinny Love" no final para a sobremesa. Não convenceu e o Parque da Cidade reagiu, entre a debandada, a deceção, a tolerância por ser quem é e a espera pelas pepitas de "For Emma, Forever Ago" e "Bon Iver".
Guardado estava o melhor bocado para depois. A naturalidade que Bon Iver não tem nesta altura, é a arma letal de Skepta.
Pela primeira vez em Portugal, a estreia não podia ter sido mais efusiva. Embora pertencente à geração fundadora do grime, o londrino de Tottenham soube assimilar a energia rock'n'roll do hip-hop americano e adaptá-la ao som do subúrbio.
A combinação é explosiva e conquista novas plateias, demasiado novas para terem a consciência história da importância de Dizzee Rascal ou Mike Skinner dos The Streets. Há cinco anos, Skepta seria um alien num festival como o Primavera.
Em 2017, é aclamado como um rei e quando à segunda canção solta "That's Not Me", um dos hinos da segunda vaga do grime, a reação é tão bruta que o recomeço é mandatório. "The crowd is nice, play it twice", comenta. E o DJ solta o instrumental pela segunda vez.
O formato é minimalista mas adequado a um palco como o Super Bock. A tensão vai crescendo. "That's Not Me" já ficou para trás, "It Ain't Safe" é banda sonora do pânico num beco escuro, "Shutdown" é auto-suficiente com os ecos da plateia, e "Man", construída a partir de um sample dos Queens of the Stone Age, o último abalo de uma estreia triunfal.
O concerto de Skepta testemunha que o risco num festival que construiu a sua reputação a olhar para amanhã, sem esquecer o ontem, compensa. E ainda haveria Nicolas Jaar a viajar pela mente, entre a espetralidade e o hedonismo, e Richie Hawtin a encorajar o êxtase e a libertação física total.
E quando o recinto já dava sinais de lotação esgotada, Angel Olsen elevou a fasquia colocada pelos álbuns e mostrou porque, entre tantas outras escritoras de canções tem algo que não se explica. Entre o verso e o refrão esconde-se um mistério por deslindar. "Twin Peaks" voltou, nem que seja para relembrar que nem todas as questões têm uma resposta.