Numa altura em que o Big Ben marcava poucos minutos para o meio-dia e meia da passada sexta-feira, nos estúdios da Sky News, fazia-se tempo enquanto a televisão passava, em direto, imagens do carro de Theresa May, captadas por um helicóptero, a percorrer os cerca de 2 quilómetros e meio do percurso que a levaria ao Palácio de Buckingham e, minutos mais tarde, a faria regressar ao nº 10 de Downing Street.
Perante a aparente relevância jornalística de documentar tal trajeto, os comentadores de serviço daquele canal televisivo britânico debatiam, em segundo plano, a longa madrugada eleitoral que o Reino Unido acabara de presenciar. Às tantas um jornalista contava que, antes da votação de quinta-feira à noite, tinha feito a seguinte questão a centenas de eleitores: Na eventualidade de ficarem presos durante duas horas, num elevador, com quem prefeririam passar esse tempo, Theresa May ou Jeremy Corbyn? Diz o jornalista que nem uma só pessoa escolheu a primeira opção.
O testemunho acima narrado não serve, de maneira nenhuma, para justificar, de forma absoluta, o porquê de uma primeira-ministra, líder de um Governo com uma maioria parlamentar de 17 deputados, rival de um partido de oposição em claro tumulto interno e com uma vantagem nas sondagens – calculada em cerca de 20 pontos percentuais sobre o dito partido -, ter perdido, sete semanas depois, a possibilidade de avançar, sozinha, para um Executivo, ter perdido a maioria parlamentar e ter perdido a vantagem palpável e anímica sobre a oposição. Mas fornece algumas pistas sobre o tipo de perfil que a candidata dos tories apresentou ao eleitorado britânico.
Assente num discurso virado quase exclusivamente para o Brexit e para as negociações com Bruxelas – e cumprida a promessa de não marcar presença em debates televisivos -, May foi protagonista de uma campanha eleitoral acanhada, com pouco impacto a nível regional e na qual foram passadas mensagens contraditórias. «O falhanço de Theresa May nestas eleições deveu-se à sua personalidade e às suas políticas. As suas fracas capacidades de comunicação e de liderança foram expostas. Tentou chamar os que têm rendimentos mais modestos, com uma abordagem dura e insultuosa ao Brexit e à imigração, mas não ofereceu nada para melhorar a economia ou os serviços públicos», explicava ao The Guardian o diretor do thinktank conservador Bright Blue, Ryan Shorthouse, que apenas via um desfecho para a desastrosa noite eleitoral tory: «May tem de se afastar o mais rapidamente possível».
Do outro lado da barricada, o líder do Labour Party suavizou os elementos mais radicais do manifesto trabalhista e alargou o debate para além do obrigatório tema Brexit. O veterano rebelde Corbyn trouxe para a campanha propostas de propinas grátis, aumentos salariais e melhorias no sistema de pensões e no serviço de saúde, que ocuparam, durante várias semanas, o espaço mediático britânico. E a elas somou performances sólidas nos debates em que participou e uma mensagem forte junto do eleitorado jovem e dos trabalhistas que votaram a favor do abandono da UE.
Críticas, acusações e uma ‘doce vingança’
Face à catástrofe eleitoral de quinta-feira – enquanto não se confirma quem é o deputado de Kensington, o último dos 650 círculos eleitorais envolvidos nas legislativas, os conservadores ficam-se pelos 318 parlamentares eleitos, menos 12 que em 2015, e a oito dos 326 obrigatórios para a tão desejada maioria -, e à posição ultra fragilizada com que May sai da mesma. A Shorthouse juntaram-se incontáveis vozes, oriundas dos mais variados quadrantes da arena política britânica, a pedir o afastamento da primeira-ministra. Corbyn defendeu que está na altura de May «dar lugar» a um Governo que «represente verdadeiramente» os britânicos, mostrando-se disposto a liderar uma coligação parlamentar inédita, e Nicola Sturgeon, do Partido Nacionalista Escocês (SNP) – que perdeu 19 deputados em relação às legislativas anteriores – disse que a «credibilidade e a legitimidade» da líder dos tories foram postas em causa com este resultado. Já o líder dos Liberais Democratas, Tim Farron, acrescentou ao pedido de demissão a indisponibilidade do seu partido em coligar-se com os conservadores e Nigel Farage, ex-líder do UKIP – varrido do mapa político britânico e agora órfão de chefia, após o abandono de Paul Nutall, terceiro classificado na sua circunscrição – acusou May de, além de se ter «fragilizado politicamente», ter «fragilizado a posição negocial» do Reino Unido nas negociações com a União.
Mas um dos testemunhos mais atrativos da madrugada eleitoral britânica veio de George Osborne, o antigo ministro das Finanças e agora editor do London Evening Standard, que decidiu assistir na primeira fila – leia-se nos estúdios da ITV, como comentador político – ao desastre dos seus sucessores, completando assim, escreve o Politico, a «doce vingança» do Executivo Cameron. Depois de apelidar o resultado eleitoral dos tories como «catastrófico» e de catalogar o programa eleitoral do partido conservador como «um dos piores manifestos de um partido de Governo da História», Osborne lamentou o facto de «as decisões que afetam Londres» virem a ser agora «tomadas em Belfast».
Isto porque, ao contrário do seu antecessor, que aceitou entrar na campa por si cavada, na ressaca do desfecho do referendo à Europa, prometido aos britânicos depois de uma vitória eleitoral esmagadora e daquilo que tinha dito no final de maio – prometera afastar-se perante um cenário de perda de seis deputados para o Labour -, Theresa May fez orelhas moucas aos vários pedidos de afastamento. No final do tal trajeto, que o helicóptero da Sky News e de outras estações televisivas tão bem captaram, a primeira-ministra subiu ao palanque montado à frente da residência oficial do chefe do Executivo e anunciou a formação de um Governo minoritário, que contará com o apoio dos «amigos e aliados» do Partido Democrático Unionista (DUP), da Irlanda do Norte, e dos seus preciosos dez deputados, suficientes para ultrapassar a barreira dos 326 parlamentares.
«O que o país precisa, neste momento e mais do que nunca, é de certeza, e depois de ter garantido o maior número de votos (…) e de lugares nestas eleições, os conservadores e o partido unionista têm toda a legitimidade para garantir essa certeza e comandar uma maioria na Câmara dos Comuns», explicou May, num discurso que para os mais desatentos até parecia sugerir que os tories tinham acabado de reforçar a maioria existente e cumprido os objetivos a se propuseram. «Agora vamos ao trabalho!», foi a mensagem final da Primeira-Ministra.
‘Amigos e aliados’ também têm planos
Além dos efeitos nocivos, óbvios, deste resultado – com 69% de participação, os conservadores lograram 42% da totalidade dos votos, seguidos dos trabalhistas (40%), dos liberais democratas (7%), do SNP (3%) do UKIP (2%) e dos Verdes (2%) – na liderança de Theresa May e na postura com que esta se apresentará em Bruxelas para negociar o abandono dos britânicos da organização comunitária, a aliança com os unionistas irlandeses pode muito bem vir a custar uma das principais bandeiras da estratégia da primeira-ministra para o Brexit e que a levaram a apregoar, repetidamente, que «um não acordo é melhor que um mau acordo». É que não foram poucas as vezes que a líder do DUP, criticou a abordagem de May, favorável a um hard Brexit. «Ninguém quer ver um hard Brexit, o que queremos é um plano exequível (…) que respeite as circunstâncias específicas da Irlanda do Norte e da História e geografia partilhadas com a República da Irlanda», defendeu Arlene Foster, citada pelo Telegraph.
A viragem do Governo para uma estratégia de soft Brexit é, pois, um duro golpe na retórica de meses a fio de May, e é quase forçoso que venha mesmo a acontecer. O DUP é, antes de tudo, um partido regionalista, e mesmo tendo em conta que o leave venceu em alguns dos principais bastiões unionistas, no referendo à UE, a verdade é que na Irlanda do Norte imperou o remain, com 56% dos votos. Mesmo numa posição de destaque e inédita na política britânica, os líderes do DUP não quererão defraudar os seus eleitores.
May agarra-se como pode à missão de conduzir o Reino Unido para fora da Europa e é baseada nessa promessa que não abdica de largar o poder. Para já fica adiado um suicídio político para muitos inevitável às primeiras horas da madrugada de sexta-feira, mas um cenário de novas eleições, algures nos próximos meses, não é de todo descartado. O prazo de dois anos para um acordo com a UE é que não pára. E fevereiro de 2019 não está assim tão longe.