Do fim do mundo viemos com Elza Soares. Para o caos nos dirigimos com Aphex Twin.
Entre a voz sofrida que anuncia a última paragem em "Eu sou, eu vou até o fim cantar" e a fragmentação sonora de techno, house, IDM, acid e drum'n'bass a diferença é do dia para a noite.
Mas tanto a cantora brasileira, a viver o auge no fim de uma vida em que a glória e o tormento foram cúmplices, e o visionário da música eletrónica, pertencem ao mesmo mundo.
Só o expressam de formas diferentes, cada um no seu pedaço e de acordo com uma visão particular que, felizmente, o NOS Primavera Sound soube compreender e assimilar como em nenhuma outra edição. A pluralidade derrubou muros subconscientes e o último dia foi pródigo no unificação das diferenças.
Só num festival com esta abertura de espírito seria possível que um teste tão duro como o proposto por Aphex Twin fosse superado por tanta gente. Durante a performance, o pelotão perdeu reforços. Nem outra coisa seria de esperar perante um ato tão improvável de experimentalismo, desconstrução e rompimento com as regras.
Muitos terão estranhado, alguns terão compreendido, quase ninguém se irá esquecer. A passagem de Richard D. James pelo NOS Primavera Sound está para a história dos festivais como a única vez dos Daft Punk em Portugal, no Sudoeste em Agosto de 2006.
Rave? Arte visual? Instalação sonora? Experiência laboratorial? Uma enorme piada? Aphex Twin é um pouco de tudo isto e seguramente muito mais.
Um abcedário é insuficiente para explicar por letras o que ali se viveu. Primeiro estranha-se, depois continua a estranhar-se porque quando há um ritmo quatro por quatro, assimilado no house, um encosto a qualquer sonoridade eletrónica convencional e direta, a música guina por algum sítio improvável e é prontamente contaminada pelo desconforto.
Um ruído estranho, uma voz distorcida ou um ritmo quebradiço espantam o normal e deixam o público à toa, como num episódio de Twin Peaks. Por conhecimento histórico da obra de Aphex Twin, impressão visual fortíssima, ou fascínio pelo bizarro, uma das mais desafiantes produções alguma vez apresentadas reteve muita gente em concentração quase total.
A determinada altura do set, os rostos de Cristiano Ronaldo, José Mourinho, Pinto da Costa, Rui Moreira, Ágata, Tony Carreira, Salvador Sobral e Jorge Jesus com Bruno de Carvalho passam pelos ecrãs em formas distorcidas. De facto, essa é uma bela imagem do universo particular e infinito de Aphex Twin.
É um planeta distante? Talvez, sobretudo para os padrões atuais de normalização, mas em contato permanente com o mundo. E é isso que torna Aphex Twin fascinante. Estando longe do instituído e invisível em palco, conseguimos senti-lo perto. E provavelmente a soltar uma enorme gargalhada interior ao ver as reações de espanto ou repulsa perante a arte do desconhecido.
A última colina do ruído já tinha subido um degrau na estreia muito aguardada e caótica dos Death Grips, enquanto os Metronomy escreviam uma carta de amor ao Porto e à canção pop florida e estival, abalançada por uma seção rítmica funky. Quando a tarde trocava de turno com a noite, Sampha desiludia com um alinhamento pouco equilibrado e dinâmico e a expor as fragilidades de uma montra de canções, poucas vezes à altura de uma voz única. "Too Much" e "No One Knows Me Like The Piano" foram exceções entre a mediana geral.
Elza Soares, em momento de apoteose, salvada vidas – incluíndo a própria – num último dia em que todos os sonhos do mundo seriam dos Tycho. E então sim, era tempo de descansar e contar os dias até ao próximo.