Podia cair-se no tonto de ser jornalista e advertir que esta crónica não seria escrita como tal – até por ser impressa dentro de minutos num jornal. Nesse jornal, este, nunca se escreveu coluna de opinião alguma que não em total liberdade – coisa que o leitor mais desatento terá já notado – e será fugindo ao rótulo que assim hoje será.
Conheci o João Porfírio em plena crise de refugiados. Não é que esta tenha terminado – ou sequer apaziguado – desde então. Não é que a proeminência de eventos políticos ou o número de celebridades que fazem notícia por virem a Lisboa sirva de causa para a crise escapar ao debate público, e o facto é que escapa. Uma crise humanitária, mal gerida, difícil para qualquer das partes envolvidas, que não são somente duas: os cristãos ou os muçulmanos, os terroristas ou as crianças, os migrantes económicos ou os refugiados de guerra; nós ou eles.
Pelo menos para mim, não. E foi graças a isso que, numa associação académica, sugeri o convite ao João (o Porfírio) para partilhar um painel sobre o assunto. O Porfírio, como fotojornalista, conhecia-o bem de perto.
Foi bonito ver como um tipo de vinte e poucos anos descrevia uma tragédia da nossa geração àquela geração. O choque na audiência, a confirmação dos teóricos presentes, a ausência de questões no fim. Um tipo, sentado num auditório universitário, a contar como vira um bote afundar-se com pessoas lá dentro, a escassos metros de si. Como não deixara cair a máquina fotográfica no mar. Como viera com os que sobreviveram até aos campos onde a vida é pouco menos infernal que a origem onde prefeririam – já o afirmaram – ainda viver. Ainda conseguir viver. Aquela coragem e aquela simplicidade ganharam o aplauso de quem escutou.
Fiquei amigo do João Porfírio e acabei por vir trabalhar no mesmo sítio que ele, já nos jornais. A simplicidade e a coragem não eram circunscritas aos auditórios. Vi, diariamente, que o Porfírio tem o sortudo azar de viver num país que só agora vem aprendendo a não ser alérgico ao sucesso. Mas também vi as fotografias. A porta de Mário Soares no primeiro dia em que já não a abriria. O abraço de Marcelo ao madeirense que viu a sua ilha arder. O medo de quem nadou até à costa para se salvar.
O mundo cabia naquelas imagens. Eram maiores que si mesmas, que os que as faziam, até de quem premiu o botão da câmara. Toda a gente as viu, as partilhou – alguns mais contra, outros menos a favor – e ninguém se esqueceu delas. O jornalismo, escrito, retratado ou relatado, é isso. Deve tentar ser isso.
O João Porfírio vai deixar de ilustrar estas páginas e isso merecia uma nota de despedida e gratidão. Aprendi muito com a sua humildade, que graças a Deus não ambiciono.
Sobram, além disso, histórias. A entrevista ao político mais conservador da praça, que tratei por ‘soutor’ o tempo todo até o fotografares pelo nome próprio, a Festa do Avante em que conhecemos o Arménio Carlos na fila para o bife e me apanhaste de ténis e t-shirt, o bar onde entrámos sem eu reparar nos varões e uma mulher prontamente se despiu, a viagem de madrugada e chuvada para o Algarve, onde havia algo mais que trabalho à tua espera.
Agora, amigo, boa sorte.
Daqui a uns anos, as pessoas vão ler esta coluna e não chegarão ao fim. Já saberão quem era o rapaz, magrinho, de riso fácil, que fotografou o mundo antes de o mundo o conhecer a ele.