A noite eleitoral francesa resultou em duas imagens enganadoras. A primeira é do triunfo desmesurado do jovem movimento de Emmanuel Macron. O presidente francês pode de facto esperar uma estrondosa maioria, ultrapassar o marco dos 400 deputados e governar sem entraves – e sem desculpas também. A confirmarem-se as previsões para a segunda volta de domingo, aliás, o La République en Marche (REM) pode aproximar-se ou atingir quatro quintos da Assembleia Nacional, o que esta segunda resultava em gritos de desespero vindos dos partidos da oposição, reclamando contra uma “assembleia monolítica”.
Mas a margem da previsível maioria de Macron é sobretudo uma ilusão criada pelo sistema eleitoral francês, pensado precisamente para garantir estabilidade pelos números e facilitar margens parlamentares desta natureza. Em termos percentuais, o En Marche até atingiu menos do que qualquer outra maioria parlamentar desde a década de 1980 e a coligação entre François Mitterand e os comunistas franceses.
O movimento de Macron conseguiu apenas 32,32% e acima de tudo graças às fraturas nos partidos da oposição. Indo mais longe, em termos absolutos e contando com a abstenção recorde, que pela primeira vez ultrapassou a barreira dos 50% na V República, o REM foi escolhido apenas por 13,43% do eleitorado.
Sangria financeira
Seja como for, a maioria está conquistada. Só 19 candidatos do REM caíram no domingo. Um feito notável para uma lista com 525 nomes, parte novatos políticos e independentes. Como esta segunda-feira previa o politólogo Laurent Joffrin no “Libération”, antecipa-se uma “inundação de conquistadores neófitos” na Assembleia Nacional. E com ela vem o segundo erro de perceção: o de que a ascensão e triunfo de Emmanuel Macron equivale a uma revolução do sistema político.
As razões para esta conclusão são múltiplas: o seu movimento, afinal de contas, foi criado há pouco mais de um ano, os dois partidos tradicionais ficaram pela primeira vez de fora do segundo turno das presidenciais e o Partido Socialista Francês corre sérios riscos de desaparecer do mapa, até porque algumas das suas principais caras caíram domingo e, atingindo um máximo de 30 deputados, o partido deve perder cerca de 95 milhões de euros até 2022 – uma boa fatia do seu financiamento, como também acontecerá com o Républicains.
No entanto, como argumenta Jorge Almeida Fernandes no “Público”, “da decomposição de um sistema partidário não emerge automaticamente um novo”. “Esquerda e direita, como espaços de identificação política, não desapareceram. Terão mudado de lugar ou de sentido.”
Os extremos
Macron venceu porque defendeu as instituições tradicionais da política francesa, e não apesar disso. No domingo não perderam apenas os partidos do antigo centro – o novo é reivindicado pelo REM –, também a Frente Nacional de Le Pen caiu em relação às expectativas e o movimento de esquerdas de Jean-Luc Mélenchon esfriou desde as presidenciais. O partido de extrema-direita provavelmente não chegará aos 15 deputados necessários para formar um grupo parlamentar, conseguir mais financiamento e ter um posto mais visível na Assembleia Nacional – caiu em relação a de 2012, aliás, quando há alguns meses esperava conquistar dezenas de deputados. E o movimento das esquerdas de Mélenchon sangrou também uma boa dose de pontos desde a primeira volta das presidenciais: do patamar dos 19,56%, o France Insoumise caiu domingo para os 11%, perdendo também o título honorífico do partido mais popular entre o eleitorado mais jovem para o colo de Macron.
A abstenção prejudicou estes dois partidos mais do que qualquer outro e o sistema eleitoral fez o resto. A Frente Nacional acabou em primeiro em 25 círculos, mas só num é que concorrerá a três na segunda volta. Nos outros espera a mesma frente republicana que venceu as presidenciais.
A nova arquitetura partidária francesa não é ainda conhecida. Muito dependerá de como acabarão os conflitos internos no PSF e partido gaulista, que esta segunda-feira tinha de pedir unidade às suas fileiras para o segundo turno – a Frente Nacional está já em confronto aberto. E muito dependerá também de como Macron vai lidar com o dossier da proporcionalidade eleitoral. O presidente prometeu-o durante a campanha, mas não é difícil perceber que a reforma resultaria num suicídio eleitoral para um partido que, num outro sistema que não o de “mini-presidenciais”, teria menos de 200 deputados. Macron, no entanto, ainda não divulgou o projeto e um aliado seu dava esta segunda vários passos atrás, dizendo ao “Nouvelle Observateur” que o objetivo será chegar, no máximo, aos 25% de proporcionalidade.