John e Sarah olham para a aplicação do festival no telemóvel, para tomar uma decisão sobre o futuro imediato. Os Sleaford Mods acabam de botar discurso. Nikki Lane já subiu ao Palco Pitchfork. Os Teenage Fanclub também no Super Bock. Aceitar à partida uma ciência desconhecida ou optar pelo respaldo de uma banda familiar.
Os dois ilustram o “turista cultural” europeu, informado sobre o mundo e adaptado ao tecnomundo. Ele, biólogo, ela designer por contra própria, ambos na casa dos 30, aproveitaram o convite do NOS Primavera Sound para conhecer o Porto. “Já tínhamos ido ao Primavera em Barcelona e conhecíamos Lisboa. Ficámos deslumbrados pelos comentários de amigos nossos nas redes sociais e fotos no Instagram”. Vieram e não se enganaram. “Isto é paradisíaco. A cidade é lindíssima, o Parque da Cidade é deslumbrante, os preços são muito acessíveis” e, detalhe muito importante para um casal “brit”, “não faz tanto calor como em Lisboa ou Barcelona”.
É um dia de sentimento dúbios para os ingleses. Theresa May acaba de ser eleita, e Jason Williamson, a voz agitprop dos Sleaford Mods – banda-megafone da classe operária – resume em poucas palavras o sentimento. “Mau dia para o Reino Unido. Bom dia para o Porto”. Um aplauso caloroso e sentido responde-lhe.
É a noite mais preenchida de sempre no NOS Primavera Sound, que se segue à quinta-feira mais concorrida em cinco anos. 30 mil pessoas testam os limites do recinto. Os bilhetes diários esgotaram. Os passes gerais há muito tinham voado. Bon Iver traz sexagenárias ao festival. Trinta por cento dos visitantes vêm de mais de 60 países. “E cada vez ficam mais tempo na cidade. Isso tem um impacto económico importante”, realça o diretor José Barreiro em entrevista ao i.
Bon Iver, o heterónimo a quem Justin Vernon declarou o óbito, põe em causa um pretérito perfeito para muitos, e centra o concerto no mal recebido e, para muitos, desconhecido “22, A Million”. As reações são mistas mas impera a tolerância. Há quem boceje. Há quem aguarde por “Skinny Love” como quem aguarda pelo comboio na paragem do autocarro. E o amor acaba por acontecer no final, depois de um teste à resistência de uma plateia de quem se suspeita saber o que é “Des-pa-ci-to”.
José Barreiro não receia os efeitos do contágio. “É inevitável”, constata e desdramatiza. Para o diretor, o risco de uma programação audaz e plural compensou. “Fizemos justiça à história do Primavera”, refere. Nas edições mais recentes, o NOS Primavera Sound centrou-se sobretudo em bandas de rock com lugar na história. Este ano, não houve uma subtração mas a música branca de guitarras da família “alternativa” dos anos 90 dividiu o protagonismo com linguagens mais atuais.
Skepta, o embaixador da segunda vaga do grime, foi coroado imperador. Miguel, o Prince dos tempos modernos, soube ter a alma da soul e o verbo do rap sobre musculatura rock. Os Run The Jewels elevaram a fasquia de há dois anos e ganharam com a reputação adquirida. Flying Lotus explorou linguagens adjacentes do hip-hop com uma visão conceptual e enigmática, centrada na música e não na individualidade. Os Sleaford Mods olharam para os espinhos, onde Angel Olsen vê flores. Elza Soares foi até ao fim do mundo a sambar porque “chega de sofrer, gemer só de prazer” e os Death Grips semearam o caos depois da ordem.
Todas estas visões couberam num cartaz atento às formas atuais de consumo da música, menos centradas na tipologia e mais direccionadas para a emoção. E, às vezes, pertença. “Chegámos a quem gosta de música. Não que em anos anteriores não o tivessemos feito mas este ano, notámos mais. Se calhar, quando apostámos em bandas de guitarras estávamos a chegar àqueles públicos mas outros não se sentiam representados”, reconhece José Barreiro.
Desta vez não. O tempo pós-tribal, da queda de todos os muros e da fragmentação, passou para o terreno. E o recinto reagiu bem à enchente. 27 mil pessoas na primeira noite e 30 mil na segunda testaram os limites do Parque da Cidade. A resposta foi “muito positiva” e deixou a organização de sorriso de orelha a orelha mas crescer não faz parte dos planos. “O conforto” do recinto, palpável na “menor intrusão” de marcas do que em festivais de igual ou maior escalada e na relação com o espaço, não é ameaçado pelos números. “É o limite”, estabelece José Barreiro. “Estamos bem assim e queremos continuar. As pessoas sentem-se bem aqui”, reforça. Para o organizador, todas as peças têm de encaixar. “Em muitos dos grandes festivais, os nomes repetem-se. Nós queremos ter algo especial”.
E se uma prova definitiva de que a diversidade e o crescimento não afetaram a identidade do festival, a cena final com Aphex Twin foi a síntese do mundo captado pelo NOS Primavera Sound. Um vendaval sonoro e visual, construído camada sobre camada, sem concessões a formas regulares da música eletrónica, entre a instalação artística, a arte visual, a cultura do fragmento e da desconstrução do ritmo e da imagem. Em qualquer outro lugar, seria uma debandada. Ali, estranhou-se e continuou-se a estranhar mas por respeito ou fascínio, muitos ficaram para tentar decifrar o que estava a acontecer. A curiosidade é a mãe do conhecimento.