Reino Unido. A doce vingança de George Osborne

Antigo ministro das Finanças de David Cameron, hoje jornalista, não tem disfarçado o deleite com o descalabro eleitoral do seu partido e com o caminho de automutilação política percorrido por Theresa May, a responsável pela sua saída do governo pela porta pequena

O anúncio das primeiras projeções das eleições antecipadas britânicas, na noite de quinta-feira da semana passada, dava o pontapé de saída para um agonizante amanhecer para o Partido Conservador que, feitas as contas ao longo do dia seguinte, apresentava uns embaraçosos 318 deputados eleitos e perdia a maioria que tinha na Câmara dos Comuns de Westminster. O naufrágio tory – que na cabeça de Theresa May, com 20 pontos iniciais de vantagem dos conservadores sobre os trabalhistas e a suposta crise de liderança vivida no Labour Party, deveria ter sido um verdadeiro passeio pelo parque – foi naturalmente esmiuçado por jornalistas, analistas e comentadores políticos, durante a madrugada eleitoral. E até aqui nada de novo.

Mas na ITV, um editor de um jornal londrino não fazia por esconder o entusiasmo, o sorriso trocista e um certo – enorme! – regozijo para com os números sugeridos pela estimativa à boca das urnas. À confirmação da debacle conservadora e da apresentação da estratégia extravagante de formação de um governo minoritário com o apoio dos ultraconservadores do Partido Democrático Unionista (DUP), da Irlanda do Norte – um partido pró-soft Brexit que se opõe ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, é contra o aborto e desconfia da veracidade das alterações climáticas, entre outras posições controversas –, nas horas e dias que se seguiram à eleição, este entusiasta prolongou o seu deleite com a tragédia e concebeu algumas das críticas mais duras contra a primeira-ministra do Reino Unido, quer em declarações proferidas em programas televisivos, quer através da projeção de manchetes provocadoras.

Ao contrário do que se possa estar a pensar, o protagonista desta trama não partilha das posturas trabalhistas, democratas liberais, ecologistas, nacionalistas escocesas ou de quaisquer outras correntes políticas normalmente opositoras do Partido Conservador. Trata-se de George Osborne, o ex-Chancellor of the Exchequer – o cargo britânico equivalente ao de ministro das Finanças, na maioria dos países europeus – dos governos de David Cameron (2010-2016), o homem que fabricou e pôs em prática o duro programa de austeridade no Reino Unido e, mais importante para o caso, o promissor político tory afastado pela própria Theresa May, em julho do ano passado, na sequência da demissão do chefe do executivo, originada pelo choque pós-referendo.

Se nos estúdios da ITV Osborne catalogou o resultado dos tories como “catastrófico” e descreveu o programa eleitoral de May como “um dos piores manifestos de um partido no governo da História”, na tarde de sexta-feira, no Twitter, enquanto na grande maioria das primeiras páginas dos jornais britânicos se atropelavam os termos “caos”, “desastre” e “choque”, o antigo ministro legendava, através de uma mensagem naquela rede social, a capa escolhida para a edição final desse dia, do seu diário, com uma simples frase: “Está tudo dito” (“Says it all”). E a que se referia? A uma fotografia da primeira-ministra, acompanhada pelo título “Rainha da Negação”, em letras garrafais, no momento em que anunciou ao país a solução DUP.

Do governo à redação

Com 46 anos e depois de alguns meses durante os quais exerceu o cargo de deputado pelo pacato círculo eleitoral de Tatton, situado nos arredores das importantes cidades operárias do norte de Inglaterra, Manchester e Liverpool, Osborne anunciou, em março deste ano, que iria abraçar um novo projeto: ser editor do vespertino diário da capital britânica, o “London Evening Standard”. Foi nessa nova pele – a decisão de trocar o parlamento pela redação, “em busca de novos desafios”, causou espanto junto da opinião pública, tendo em conta a sua total inexperiência no meio jornalístico e o passado no governo – que protagonizou aquilo a que o site Politico ou a revista “The Spectator” descreveram como uma “doce vingança” sobre o Partido Conservador, posta em prática nos últimos dias.

Frases como “May é uma mulher morta que ainda caminha”, “as decisões que afetam Londres vão ser agora tomadas em Belfast” ou “Boris [Johnson] está em permanente campanha pela liderança [do partido]”, foram ditas pelo próprio, entre sorrisos e com um indisfarçável brilho nos olhos, no programa de Andrew Marr, na BBC. Editoriais corrosivos criticando a estratégia eleitoral tory, desprezando a “autoridade não-existente da primeira-ministra” e troçando da “ferida autoinfligida pelo desastroso manifesto” foram redigidos por si e publicados no “Evening Standard”.

E assim, depois de meses de hibernação, regressa com uma nova capa o tory que muitos viam como o próximo líder do partido e um dos principais rostos do malfadado governo de Cameron, para criticar o plano que os seus sucessores desenharam para tirar o país da União Europeia e para liderar os destinos do Reino Unido, com observações venenosas, palavras de escárnio e um inegável prazer em ver aqueles que o afastaram – de forma previsível, diga-se, tendo em conta o seu posicionamento sobre o Brexit, em todo igual ao do seu líder de executivo – a lutar para manter a cabeça à tona da água. “Acho que ninguém se lembra da última vez que Osborne se mostrou tão contente”, resume o jornalista John Crace, num artigo de opinião no “The Guardian”. Pois claro! O próprio nem disfarça.