Ainda faltam um par de horas para que o grupo se junte, mas Luana sai de casa já trajada para a marcha dessa noite. Para os vizinhos, ela é a Luana, a neta da Teresa que vende ginjinha na rua de São Miguel. Para os turistas que passam, ela é sinal de postal de férias perfeito. Não mentimos quando dizemos que são pelo menos trinta os franceses que a rodeiam entre flashes e aplausos. “Vá filha, tira só mais esta que o senhor ‘tá a pedir”, insiste Teresa, perante o revirar de olhos da neta.
Em vésperas de Santo António, não faltam momentos dignos de fotografia. Teresa quer que sejam aproveitados, até porque como moradora do bairro, acredita que não falta muito para que os turistas venham só fotografar as paredes das casas degradadas. “Qualquer dia já não há a dona Lita, a Carminda ou o dono do café ali da frente”, comenta, lembrando uma Alfama que sempre teve gente na rua, confusão e vozes a falar alto. “As pessoas vinham para a rua passar a ferro, descascar batatas, fazer renda”, conta. Agora só se houve falar inglês e o prédio onde nasceu – “foi mesmo, que a minha mãe nem teve tempo de ir à maternidade” – é mais um dos hostels que servem de albergue a quem vem de fora para viver uma Lisboa por dentro.
Nem de propósito, “Não toquem na minha Alfama” é o tema que o bairro, campeão do ano passado levou este ano a concurso na Avenida da Liberdade. “Não temos nada contra os turistas atenção”, avisa Maria do Carmo enquanto descansa junto à banca pronta para mais logo vender sardinhas assadas, “mas tem que haver um limite”. Com o coração – e a carteira – dividido, Maria sente falta de ver o bairro cheio de “pessoas das nossas” e tem pena que aos 48 anos não consiga ter os filhos como vizinhos. “Com T1 a 790 euros, quem é que consegue viver aqui?”. A pergunta é retórica e inevitável é o encolher de ombros assim que se fala naquilo que o turismo trouxe de bom. “A mim trouxe-me emprego”, garante. Atualmente, Maria do Carmo faz limpezas em 30 casas destinadas ao arrendamento turístico em Alfama e Castelo.
Colinas do turismo
E é exatamente no bairro vizinho que encontramos Hermínio e Natividade, os donos da única mercearia do Castelo. “Quando há 48 anos abri este negócio, éramos seis lojas do género”, lembra Hermínio. Agora, tudo fechou para dar lugar a hotéis e casas destinadas a Airbnb e até a própria Mercearia da Estrela apenas se mantém aberta por teimosia dos donos, que vão adiando a saída como podem.
Mas à semelhança do que acontece em Alfama, também aqui há um antes e depois deste boom vindo do exterior. “Sem o turismo, o Castelo já não existia, tínhamos ido todos à falência”, admite Natividade, mesmo que as compras que façam não vão muito além de garrafas de água e peças de fruta. Mas a verdade é que este dinheiro estrangeiro representa já 70% das vendas deste espaço. Ainda recorrendo a percentagens, Hermínio garante que só 10% do bairro é dos moradores. “Isso sim deixa-me triste, até porque eu não trabalho para os turistas, a minha vida é a de bairro”.
E é seguindo precisamente as indicações de quem se mantém fiel a essa vida de bairro, que somos direcionados novamente para Alfama. “Se quer ver gente daqui, é no Galego”, há quem aponte. E assim vamos, até chegar ao único café onde o pessoal de Alfama se reúne.
Fugiu dos ovos com bacon servidos ao pequeno-almoço, às panquecas para o brunch, ou à moda dos enlatados acompanhados por um copo de vinho. “Se fosse mais novo tinha-me metido nisso, que eu bem os vejo a vender uma lata de sardinhas, duas fatias de pão e um copo de vinho a vinte euros”, refere António. Mas longe das modas, aqui serve-se cerveja a um euro e croquetes a 90 cêntimos. “E assim nos vamos aguentando”, admite o proprietário, que juntamente com a mulher há 25 anos gere os poucos metros quadrados onde atualmente cabe todo um bairro. “São eles que me dão negócio”, garante, enquanto passa o pano molhado pelo balcão. “E nós não queremos outra coisa”, grita Jorge, que se junta ao grupo que se encontrou à porta, até porque os poucos metros quadrados comuns a todos os negócios da zona fazem com que a rua seja o prolongamento deste café.
O hábito de todos os dias dispensa palavras. Jorge levanta a garrafa vazia e António passa-lhe uma cheia. “É só mais uma, afinal é Santo António”, justifica. Nasceu e cresceu em Alfama e, aos 60 anos, ‘turista’ é palavra que serve de rastilho a um rol de queixas. “O meu prédio está cheio deles”, conta, “e o pior é que vão todas as noites aos fados, chegam de madrugada e é pumba com a porta a toda a hora. Não há respeito nenhum”, salienta. Sente o seu espaço invadido e, por isso, até recorre à história para prever uma revolução. “Já expulsámos os espanhóis uma vez, os franceses outra vez, queres ver que vamos ter que voltar a fazer o mesmo?”. Mais uma rodada, mais um desabafo. “Qualquer dia temos a marcha de Alfama cantada em inglês, alemão ou espanhol. Vão ser precisos mais treinos”, brinca.
A ironia de Jorge ainda não se aplica, mas a verdade é que não há restaurante em Alfama que não tenha à porta o menu em inglês e, quem nos tenta aliciar a experimentar uma noite de fado e comida, arrisca primeiro uma abordagem em estrangeiro.
Na verdade, e para bem da tradição, Maria Arminda, é a exceção. “Eu, quanto muito, falo mais alto. Cá nos entendemos”, conta, enquanto dá um retoque a mais uma flor de papel que tem à venda no Largo do Chafariz de Dentro, onde monta banca há 49 anos.
Os turistas passam, comentam entre si e são poucos os que arriscam. Mas há um casal que avança. “Podemos cheirar?” Maria Arminda quase salta da cadeira: “Aqui cheira-se com a mão, não meta lá o nariz!”. A ordem é acatada, outra coisa não se esperava. “É sempre assim, vão logo com o nariz espetado. É preciso explicar tudo”, lamenta.
Já Dina Corvelo, vizinha de banca e de bairro, tem mais paciência com quem vem de fora. “Eles não fazem mal a ninguém, coitados”, admite, mesmo que tenha já perdido à vontade de vir à janela de casa. “A rua é estreita e à frente tenho um prédio alugado a turistas. O que é que acontece? Todos os dias é gente nova, uma pessoa nem se habitua às caras”. Mas não é por isso que não tenta uma aproximação. “Olhe, outro dia até atirei para a janela da frente um paninho feito por mim em croché. A rapariga, que me parecia chinesa, perguntou-me quanto era e eu só disse: não é nada, leva para a tua terra. Não sei se ela percebeu”.
Os turistas acabaram por dar outra cor, outra língua e outros costumes às janelas de Alfama, que neste bairro nunca se habituaram a estar fechadas. “Mas olhe que agora vejo-me obrigada a fechar mesmo, sabe?”. Ana Cunha já deu por si a ser fotografada só por estar a estender roupa. “Eu não percebo a admiração. Ou eles têm todos máquinas de secar em casa, ou então não sei qual é a piada disto”, confessa.
Assim por alto, “mas à confiança”, Ana arrisca em 70% de turistas, face a uns 30% que já não chegam para fazer de Alfama o bairro onde cresceu. “Quase que me sinto num jardim zoológico. Eles acham piada até quando venho apanhar as cuecas da corda de estender ou estou a varrer a rua em frente a minha casa”, conta.
Tivéssemos nós tempo e Ana não tivesse à espera uma travessa de sardinhas para assar e a lista de queixas continuava, até porque à sua volta reuniu-se um grupo de apoio, que vai lançando para a conversa mais histórias de vizinhos expulsos de casa e filhos que não têm dinheiro para voltar a viver no bairro onde nasceram.
Despedimo-nos com desejos de uma boa noite de negócio e de festa para quem tem no mês de junho o ganha pão para o resto do ano. Voltamos atrás, de bloco na mão, porque ficou a faltar perguntar à Ana, qual a sua idade e profissão. “Tenho 29 anos e faço limpezas em casas do bairro alugadas a turistas”. Pois.