O choque
David Cameron tinha prometido um referendo à União Europeia e cumpriu com a palavra. Mas o inesperado desfecho da votação do dia 23 de junho de 2016 não lhe deixou outra opção senão demitir-se do cargo de primeiro-ministro e sair da política pela porta pequena, pouco mais de um ano depois de levar o Partido Conservador a uma maioria absoluta nas eleições legislativas.
Ao choque causado pela decisão inédita de 51,9% dos participantes no referendo seguiu-se a procura de um verdadeiro brexiteer, dentro dos tories, que pudesse liderar o Reino Unido rumo a um divórcio assustador e de consequências incertas. Essa figura não apareceu.
Os nomes mais óbvios eram os de Boris Johnson ou Liam Fox, dois entusiastas do abandono da UE, mas remeteram-se a papéis secundários e quem avançou para a hercúlea tarefa foi a pouco carismática Theresa May, que até tinha feito campanha – tímida, é certo – pelo remain.
O longo silêncio
Os primeiros meses do Governo de Theresa May demonstraram, de forma brutal, a impreparação do Partido Conservador (e do país!) para a missão que lhe havia sido destinada pelos britânicos. Entre manifestações massivas pró-Europa, petições de repetição do referendo, críticas da oposição, declarações contraditórias dentro dos tories, demissões de figuras-chave da diplomacia britânica, e o desbaratamento dos adeptos mais fervorosos pela saída, o verão do ano passado protagonizou um longo e aborrecido silêncio do Executivo britânico, incapaz de apresentar um plano para a saída do Reino Unido da União Europeia.
O comedimento foi timidamente suprimido no início de outubro, com a promessa de May de acionar o artigo 50.º do Tratado de Lisboa – que formaliza o pedido de saída de um Estado-membro da União –, antes do final de março de 2017. A promessa deu-lhe oxigénio, mas a apresentação da estratégia do Governo só viria a ser revelada em janeiro.
O travão legal
Quando pôs pela primeira vez o pé no número 10 de Downing Street, e se agarrou à demanda de fazer cumprir o Brexit, Theresa May não tinha quaisquer dúvidas: ao Governo cabia a competência e o mandato exclusivos para formalizar o pedido de abandono da União.
Mas em resposta à interposição de um grupo de cidadãos, liderado pela conhecida empresária Gina Miller, o Tribunal Superior britânico lembrou, no início de novembro, a soberania de Westminster na revogação ou alteração das normas constitucionais e decretou a obrigatoriedade da aprovação parlamentar.
O Executivo deitou fumo, temeu que a ordem judicial pudesse atrasar o acionar do artigo 50.º e pediu recurso às instâncias superiores. Mas o Supremo Tribunal confirmou, em janeiro, a decisão do Superior e estabeleceu que a competência para dar início ao Brexit, residia nas duas câmaras do Parlamento. Um travão nas intenções do Governo e um pequeno rombo na legitimidade apregoada.
A estratégia
Os meses de espera por uma estratégia do Governo do Reino Unido para a saída da União Europeia, só terminaram em meados de janeiro deste ano, e confirmaram a dura realidade de um hard Brexit. Na apresentação dos seus planos, a primeira-ministra prometeu o país «nem meio dentro nem meio fora» da UE, e totalmente livre para se transformar na «nação comercial global» de outros tempos.
Baseada em 12 grandes prioridades, a estratégia de May incluía o abandono do Mercado Único e a renúncia às ‘quatro liberdades’ – circulação de bens, capital, serviços e pessoas – a ele associadas, uma vez que estas impossibilitam o controlo da imigração e a primazia do direito interno sobre as leis europeias, duas das principais medidas defendidas pelo Governo conservador.
Foi nessa célebre conferência de imprensa que May estreou um aviso que se viria a tornar icónico: «Um não acordo é melhor do que um mau acordo».
O opositor improvável
Março de 2017 estava no horizonte e May queria cumprir a promessa de formalizar a intenção de saída antes desse prazo. ‘Obrigada’ pelos tribunais, apresentou então uma proposta de lei minimalista, para ser aprovada pela Câmara dos Comuns e pela Câmara dos Lordes.
A maioria tory na câmara baixa – aliada à imposição de disciplina de voto do líder dos trabalhistas, aos seus deputados – aprovou facilmente o ‘Ato (de Notificação de Retirada) da União Europeia 2017’, mas os lordes decidiram entrar em cena, e apresentaram duas emendas ao documento: a garantia dos direitos dos cidadãos europeus em solo britânico e dos expatriados na UE; e a obrigatoriedade de aprovação parlamentar do acordo final.
Os Comuns ultrapassaram, no entanto, as alterações. Assim, a 29 de março o Governo acionou o artigo 50.º e com ele estabeleceu-se um prazo de dois anos para alcançar um acordo com a UE.
O golpe falhado
Theresa May não fora eleita para o cargo e a sua legitimidade para liderar as mais complexas negociações da História europeia moderna, foi colocada em causa durante meses. Mas a primeira-ministra rejeitou repetidamente convocar eleições.
Foi, por isso, com enorme surpresa que o Reino Unido ouviu May anunciar, em abril, a antecipação das eleições para junho, sob o pretexto de unir Westminster em volta da missão Brexit – leia-se aumentar a maioria tory. Na realidade não era um mau plano: os conservadores lideravam nas sondagens com 20 pontos percentuais acima de um Labour em aparente queda livre, e o Governo cumprira com os prazos prometidos.
Mas uma campanha tory desastrosa, aliada ao renascer das cinzas dos trabalhistas, resultou numa amarga manhã de 9 de junho para May. Perdera a maioria. Vozes sensatas, e menos sensatas, tentaram convencê-la a afastar-se, mas a primeira-ministra avançou para os unionistas norte-irlandeses do DUP e arranjou um acordo que ainda ninguém conhece.