Mossul, ou as ruínas que dela restam, está prestes a sair das mãos do grupo jihadista que a governou durante três anos e dela conseguiu uma importante fatia do simbolismo, combatentes e receitas tributárias do seu suposto califado. O autoproclamado Estado Islâmico está nas últimas linhas da cidadela e a apenas alguns dias de perder a maior cidade que alguma vez controlou – a última que detém no Iraque, onde ficará reduzido a algumas propriedades rurais. “As nossas forças heroicas estão prestes a declarar a vitória final sobre os gangues do Daesh”, declarava ontem o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, num comunicado em que celebrava o primeiro dia do Eid, a festividade que simboliza o fim do Ramadão. Para as cerca de 900 mil pessoas que conseguiram fugir da cidade desde que a ofensiva governamental começou, em outubro, este é o primeiro Eid que lhes é permitido celebrar em três anos de controlo jihadista, que só permitia preces, nunca as festividades. “Só será real quando regressarmos a casa”, disse um dos deslocados à Reuters.
Pouco falta, a acreditar nas palavras dos comandantes iraquianos que, contudo, exageram muitas vezes os relatos dos sucessos e tendem a ignorar os seus fracassos. A força especial de intervenção urbana, treinada pelo exército norte-americano, combate agora em menos de dois quilómetros quadrados as poucas centenas de combatentes jihadistas que ainda restam nos densos bairros antigos. Ainda assim, restam cerca de 350 extremistas, segundo dizia ontem um comandante à Reuters, e as ruas são tão intrincadas que, nesta fase, os veículos blindados se tornaram quase inúteis. O domínio extremista pode ter os dias contados em Mossul, mas o grupo tem ainda as suas armas mais eficazes: a vontade de morrer por suicídio com explosivos e dezenas de civis como escudo humano. Na sexta-feira, por exemplo, quando uma coluna de residentes escapava, um extremista fez-se explodir no meio deles, matando pelo menos 12 pessoas e ferindo várias dezenas.
Praticamente metade das pessoas que morreram em Mossul desde o início da ofensiva de outubro são civis. Em finais de janeiro, as Nações Unidas afirmavam que haviam morrido mais de dois mil não combatentes desde que começaram as operações, a maioria vítima das grandes explosões suicidas desencadeadas quase diariamente. Os jihadistas do Estado Islâmico disparam também sobre fugitivos, armadilham as suas ruas e residências, e ocupam as casas para nelas colocarem atiradores furtivos. Não se conhece ao certo o número de civis que já morreram por este mês de junho, mas a violência tornou-se pior por várias ordens de grandeza desde que a ONU publicou os cálculos. E a chegada de Donald Trump à Casa Branca parece ter desencadeado também um período de bombardeamentos norte–americanos com menos consideração pela vida de civis.
A coligação que combate o Estado Islâmico a partir dos ares – em que participam vários países mas que está sobretudo a cargo dos EUA – pode ter sido responsável por já mais de quatro mil civis mortos na Síria e Iraque, segundo a organização independente AirWars, que documenta relatos no terreno através de ativistas. O próprio comando militar americano admite que as suas operações – que, é verdade, acontecem agora em cenários mais urbanos do que no ano passado – já mataram “pelo menos 484 civis sem intenção”. Este número foi publicado no início do mês e é muito menor que os reivindicados por organizações humanitárias. Em todo o caso, representa um grande aumento, visto que, em fevereiro, os EUA admitiam apenas a morte de 199 civis.
Muitos culpam a pressa política que há em recapturar Mossul., em Bagdade – humilhada pela ascensão meteórica do Estado Islâmico – e em Washington, onde o novo governo promete uma vitória rápida e onde Trump disse há meses que deu “autorização total” ao seu exército para operar como entender. Os militares afirmam que as regras para escolher alvos continuam as mesmas mas, como escreve Micah Zenko no “New York Times”, os EUA lançam agora mais 20% de bombas do que nos últimos quatro meses do governo Obama – uma delas atingiu um depósito de explosivos em março, em Mossul, matando mais de cem civis só de uma vez. Até meados de junho, aliás, o exército americano tinha apenas duas pessoas a investigar mortes civis no Iraque e Síria, segundo diz Zenko. Nawal Fathi Khala, vizinho de uma família atingida por uma bomba ocidental em Mossul, acusa os seus próprios “libertadores” de agirem com impunidade: “Ninguém nos bateu à porta. Ninguém nos perguntou o que aconteceu. Ninguém investigou. Não vimos uma única pessoa”, disse ao BuzzFeed. “Somos pessoas pacíficas. Nunca magoámos ninguém. Porque é que isto nos aconteceu?”