Prince era Rogers Nelson de nome, símbolo de grafismo, O Artista de cognome, “anteriormente conhecido como Prince” quando declarou guerra à Warner pela posse dos direitos sobre a sua obra. Controlador obsessivo da sua criação, guardou inúmeras canções para um futuro invisível – 20 mil, de acordo com o Bremer Trust Bank, responsável pela gestão pós-morte do extenso património.
Em 1984 era já uma estrela em ascenção graças a uma mão-cheia de álbuns e concertos insanos, reveladores de um talento sem fronteiras estílisticas, sonoras ou de outra índole. Enquanto outros profetas da música negra como Miles Davis, Herbie Hancock, Ray Charles, Marvin Gaye, James Brown e Michael Jackson afirmavam o afro-americanismo e a necessidade de emancipação de uma comunidade, Prince jogava nas entrelinhas. “Am I black or white, am I straight or gay?”, perguntava em “Controversy”, o ponto de partida do álbum com o mesmo nome, de 1981.
A rivalidade com Michael Jackson ainda não era assunto, mas Prince não quis ficar atrás e, dois anos depois da obra magna da pop “Thriller” – o álbum mais vendido de sempre da história, com mais de cem milhões de unidades –, gravou o maior clássico de uma obra infinita. Segundo os responsáveis pela administração do espólio, deixou música gravada suficiente para a edição de um longa-duração por ano no próximo século. A reedição de “Purple Rain” refresca a memória para a importância de um disco que tanto provocou o choro coletivo de um planeta na canção titular como o resgatou à letargia na chávena inicial de adrenalina de “Let’s Go Crazy”.
“Purple Rain” deu a conhecer Prince em todas as dimensões – emocional, musical ou teatral, já que se trata da banda sonora para um filme que, embora sem o mesmo peso histórico, lhe serviu de rastilho. Do baladeiro ao rockeiro, físico, sentimental ou hedonista, Prince caracteriza-se a si mesmo num depoimento de individualidade total, desde o guitarrista virtuoso influenciado por Jimi Hendrix ao arquiteto de ritmos funk e baladas sensíveis.
A história da indústria está repleta de exceções que confirmam a regra. “Purple Rain” é uma delas. A Warner desconfiou da grandiosidade do projeto mas, renitente, concordou com as ambições de Prince. Não se enganou, já que o álbum vendeu 25 milhões de cópias, a sexta banda sonora mais vendida de sempre. Se Michael Jackson conseguiu oito singles em dez canções de “Thriller”, o rácio de Prince foi de cinco para nove.
Pela primeira vez, Prince gravou com uma banda de apoio, The Revolution. E o resultado foi um som mais amplo e denso em camadas, com as baterias eletrónicas cheias da época, uma secção rítmica incansável, vozes em catadupa e solos orgásticos. O desfecho é um Prince no topo da forma a maximizar ao extremo um universo profundamente individualista e de relações contraditórias com o mundo.
“Purple Rain” ainda hoje toca no nervo e é capaz de provocar dilúvios emocionais, mas Prince era sobretudo uma figura controversa e provocadora. Já então a relação com os meios de comunicação era distante e as entrevistas rareavam. A partir de “Purple Rain” foi cada vez mais difícil ouvi-lo dar as respostas que o mundo queria saber sobre a sexualidade e outras ambiguidades sugeridas ao longo da sua obra. Foi, no entanto, a partir daqui que ganhou a liberdade de responder através da música, deixando a imaginação de cada um construir o mito à sua medida e alimentar o mistério que nunca o deixou cair do pedestal, mesmo quando a crítica já não reconhecia a vitalidade da sua obra ou o público já não acorria às lojas a comprar os discos. E como fez questão de tornar público, Prince foi um resistente à era do digital. Só tardiamente álbuns mais recentes ou representativos foram disponibilizados nos serviços de streaming, e só depois de morrer a obra começou a gotejar no YouTube, depois de anos de relações cortadas por divergências de Prince com distribuição de direitos.
Nas escavações de material retroativo, o álbum cresceu dos 43 minutos iniciais divididos por nove canções para três horas e 18 minutos, separadas por três discos. O primeiro recapitulativo da gravação inicial com a novidade do som remasterizado, “From the Vault & Previously Unreleased”, uma coleção de seis inéditos, alguns familiares de gravações não oficiais partilhadas pelos fãs (ver texto ao lado) e um terceiro com remisturas e versões raras dos singles, editadas em lados B. A edição especial inclui ainda um DVD com o concerto “Live at the Carrier Dome, Syracuse, NY, March 30, 1985”.
Em “Purple Rain”, a estrela tomava forma como ainda hoje a reconhecemos e eternizava o tom púrpura.