São onze da manhã e na estreita estrada que vai até à praia fluvial do Samouco vê-se, do lado esquerdo, um parque de merendas. Dezenas de carros estão estacionados em frente ao parque. Homens e mulheres de todas as idades vestem fatos de neoprene, como os que se usam para mergulhar, mas estes não estão em bom estado. São fatos velhos, alguns estão rotos, há marcas da rotina, próprios dos objetos que são utilizados com regularidade. Há quem tenha apenas galochas até às ancas e calções vestidos. Passam carros com sete e oito pessoas lá dentro, estão à procura de estacionamento. É o início de mais uma manhã de trabalho ilegal na busca pela sobrevivência bem ali, na margem sul do rio Tejo, mesmo debaixo da ponte Vasco da Gama.
Profissão ilegal
Um estudo científico lançado no ano passado e dado a conhecer pelo Público, reuniu os departamentos de investigação de várias universidades, e revelava existirem mais de 1700 mariscadores, cerca de 1500 ilegais, que «retiram do estuário do Tejo a maioria dos 19 mil quilos de amêijoa – japonesa por dia (dez mil pelos aparelhos de arrasto) num negócio na sua larga parte pirata que, em 2014, terá envolvido uma verba estimada entre os 10 e os 23 milhões de euros». Em 2015 ,os 182 apanhadores legais (que estavam licenciados em 2014) registaram em lota 1.6 toneladas de amêijoa por dia. É precisamente esta abundância de bivalves que traz, todos os dias, cerca de mil pessoas à praia do Samouco assim que a maré desce.
Ao aproximar do rio, do lado direito, junto a uma casa, está um bar improvisado Altar do fado, lê-se numa pintura da parede da esplanada. Presa num arame com aspeto frágil está uma placa: ‘Magazin Romanesc Samouco- Produtos Tradicionais Romenos’.
Valentim está a beber uma cerveja na parte exterior do bar. Tem a pele morena, braços e mãos de quem trabalha com a força. É romeno e está em Portugal desde 2004. Já fala um português quase fluente, trabalhava na área da construção civil mas a empresa fechou. Há dois meses descobriu o tesouro do Samouco. «É para sobreviver», explica enquanto cumprimenta um grupo de compatriotas que chegam numa carrinha branca, com música romena a sair pelas janelas abertas. «Estes não falam português, mas há muitos que sim. A maioria aqui é tudo romeno. Mas há vietnamitas, tailandeses, ucranianos, russos, está aqui gente de todo mundo», diz enquanto um amigo que não compreende a língua do novo país se senta ao lado dele, sobre uma mesa de plástico. «Bom dinheiro não dá, mas dá para comprar qualquer coisa para o dia, pagar contas, sem roubar ninguém».
Bivalves contaminados
O Instituto Português do Mar e da Atmosfera lançou, em maio de 2016 um comunicado que avisava que a apanha de bivalves estava totalmente proibida no estuário do Tejo «devido à presença de fito plâncton produtor de toxinas marinhas ou de níveis de toxinas ou de contaminação microbiológica acima dos valores regulamentares». Valentim responde com ar despreocupado «a amêijoa é boa, que nós comemos. Tem é de as saber limpar».
Depois do bar, surgem barracas de zinco, uma roulotte que serve bifanas e cerveja logo de manhã. Há lixo em toda a margem do rio. Um cão senta-se calmo no meio de um grupo de trabalhadores que se prepara para entrar na água. Estão munidos de ancinhos, enxadas, redes e recipientes de plástico.
Um ofício de risco
Um grupo de portugueses observa o rio. A maré está a baixar, não tarda é hora de ir para o lodo escavar até encontrar os bivalves. Manuel, de 62 anos de idade é magro, de cara encovada, tem uma camisa azul coçada e uns calções de fato de treino. Observa tudo com ar cuidadoso. Quando se pergunta se esta é uma profissão perigosa sorri. «Pois claro que é, caso contrário não ficava gente lá presa e morria, como o chinês do Barreiro». Manel refere-se a um homem de cidadania chinesa, com cerca de 50 anos, que no sábado da semana passada saiu pela primeira vez para a apanha dos bivalves e não chegou a regressar a terra. O corpo foi encontrado sem vida na manhã seguinte. Segundo dados da Autoridade Marítima morreram 18 pessoas entre 2011 e 2016 na apanha de bivalves no país inteiro.
António, de 40 anos, com uns calções e t-shirt verde tropa concorda com o companheiro de trabalho e acrescenta a razão do perigo desta profissão. «O problema é que a maioria desta gente não é de cá, não conhece o rio. Isto são águas grandes, eles não conhecem os caminhos e com a força da água já não conseguem voltar quando a maré sobe».
O que o rio vai trazer à rede em cada dia não é previsível. «Depende da água, depende do dia, do tempo, é complicado». Com eles está Carlos, de barba cerrada, já branca e boina na cabeça. Tem 63 anos. Os três companheiros de apanha da amêijoa, não imaginavam há uns anos, que a vida os ia trazer até às águas do rio. «Isto é a pobreza que traz as pessoas ao Tejo. É a necessidade pela sobrevivência», diz Manuel. As autoridades não é com eles que implicam. «Eles não querem saber de nós, podem implicar um bocado mas o que lhes interessa tirarem os meus três quilos de marisco e os quatro quilos dos outros? Eles querem é os compradores, esses juntam toneladas e ficam-lhes com elas», explica António que continua: «Vêm, tiram o marisco aos compradores e atiram-no ao rio de novo. Os compradores contratam mergulhadores e apanham a amêijoa toda de novo. É uma fantochada». Carlos olha para o chão, enquanto desenha na areia um meio círculo com o pé «isto na verdade é uma máfia, é o que é».
Carlos trabalhava na construção civil, ainda tem as suas próprias máquinas mas «está tudo parado». António vai mais longe e pergunta «aqui na Margem Sul há, por acaso, mais algum trabalho sem ser este? Prometeram um aeroporto, prometeram hotéis, onde é que a gente pode trabalhar?».
Não há dinheiro para pagar impostos
Quanto à ilegalidade e ao não pagarem impostos a resposta é pronta e assertiva «uma pessoa está aqui porque quer comer. Mal ganhamos para isso, quanto mais para pagar impostos. As contas ao fim do mês vêm sempre, pagamos renda, água, luz, alimentamos a família, então se fossemos a pagar impostos com o pouco que a gente tem é que devia de ser lindo», responde Carlos, o mais novo do grupo.
São muitos os que ali param mesmo sem serem mariscadores do Tejo. É o caso de um casal de ciganos português que vai ali conviver antes de seguir para as feiras onde vendem roupa. «É gente boa aqui, venho cá ver a malta», diz o homem alto que não quer dizer o nome, mas que garante que «esta gente só quer ganhar dinheiro de forma honesta, é uma vida dura».
Encostados à roulotte, em que duas jovens mulheres servem cervejas, galões, bifanas e pequenos almoços, numa dimensão em que a hora do almoço de uns e do despertar de outros se cruzam, estão outros três amigos pescadores. De garrafa na mão está Vlademir, ucraniano, de t-shirt vermelha e bochechas rosadas, tem 39 anos. Ao lado, um homem moreno de olhos rasgados está descalço e acende um cigarro, chama-se Vazile, é romeno e cigano e tem a mesma idade do companheiro. «Não tenho problemas em dizer que sou romeno e cigano, em Portugal as pessoas são boas, não me tratam mal por saberem quem sou», diz com um sorriso no rosto. Estão os dois há seis anos na vida em que não há patrões, nem salário certo, nem horário fixo. «Vejo gente a ir ali para Lisboa pagar fortunas para ser turista, eu tenho a água e o calor todos os dias, sem pagar», acrescenta Vlademir à gargalhada. Mas o assunto é sério.
Greve aos preços baixos
O quilo destes bivalves está entre os três euros e meio e os quatro euros. Quando o preço dos compradores é demasiado baixo fazem greve. «Não saímos para a água, não há apanha, e assim o preço tem de subir», explica Vazile, que tem três filhos, um deles já acabou o secundário. «Ele há de ter vida melhor que a minha». Vazile conseguiu juntar dinheiro para ter o seu próprio barco, sempre aumentam as probabilidades de encontrar mais marisco. Mas o pior é quando a Polícia chega e lhes confisca o barco e o que apanharam. «Eles já nos conhecem, também estão a fazer o trabalho deles, mas nós temos de viver, é a vida».
De calções ao fundo da barriga, chega José (nome fictício) que além de apanhar amêijoa, também a compra e vende para Espanha. Num mês e meio foi apanhado pela Polícia cinco vezes. Agora, tem várias multas para pagar às prestações «tem de ser aos bocadinhos que não tenho esse dinheiro, não é? Mas pago tudo, não fico a dever a ninguém». Segundo José, de 55 anos, o mercado português é muito fraco, mas «os espanhóis é que a sabem. Compram esta amêijoa à gente que é barato, limpam-na e depois vendem como se fosse de origem espanhola. Aqui ganhamos três a quatro euros por quilo, no supermercado pagam quinze euros pela mesma quantidade».
No Barreiro o cenário é parecido, ainda que com menos homens na água. Cristiano, de 84 anos, é um nome sonante no que toca à sabedoria da pesca. «Nasci neste rio, entende? Conheço-o melhor do que ninguém. Mas isto é um perigo e muitos destes rapazes não sabem do perigo». De boina branca à marinheiro e óculos redondos, olha para o rio e conta «ninguém percebe este fenómeno, como é que a amêijoa começou aqui a aparecer. Isto é coisa dos últimos 15 anos, antigamente não havia disto. Havia enguias, linguados, fanecas, tanto, tanto peixe, mas nada de marisco», conta de braços cruzados a olhar para os mariscadores. Ao seu lado, amigo de longa data de Cristiano, não tem dúvidas: «Isto é um tesouro. Um tesouro esquecido e mal usado. Um desperdício».
Luz ao fundo do túnel
Mas esta realidade está prestes a mudar. Nesta sexta feira foi assinado um protocolo pela ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, que prevê a criação de infraestrutura para depósito, transformação e valorização de bivalves capturados na região. A instalação será no Barreiro, mas todos os homens e mulheres que trabalham neste ofício terão, em breve, uma nova realidade no que à apanha dos bivalves nas margens do Tejo diz respeito. O Período máximo para a criação da infraestrutura é de um ano com um custo previsto entre um milhão e duzentos mil euros e um milhão e quatrocentos mil. Juntamente com o governo, assinaram o protocolo a Direção-Geral dos Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), a Administração do Porto de Lisboa (APL), a Câmara Municipal do Barreiro, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) e a Docapesca – Portos e Lotas.