EUA e China. O confronto latente está de regresso

A lua de mel entre Washington e Pequim está em vias de terminar. Regressam as pequenas tensões e o receio de uma guerra devastadora

De alguma maneira Xi Jinping extraiu uma dose rara de boa vontade da parte do novo presidente norte-americano e isso aconteceu durante a sua visita informal ao resort de golfe de Donald Trump na Florida, em abril. Alguns analistas, como a jornalista Zhang Yuanan, por exemplo, sugerem que os líderes das duas maiores potências se reviram na sua perspetiva transacional da política: dá-se algo para receber algo e dessa forma conservar a melhor mão. Xi queria menos agressividade americana quanto ao seu comércio, respeito pelo princípio de “uma só China” e o fim da ideia de que seria designado um país “manipulador de divisas”. Trump queria mais controlo chinês em Pyongyang e travar a sua quase inevitável marcha armamentista. Pensou tê-lo conseguido, mas enganou-se.

A lua de mel entre o governo americano e o chinês ainda não acabou, mas dá sinais de estar no fim. Passados semanas e meses de elogios, os Estados Unidos e a China regressaram a uma rota de lenta colisão. Na semana passada, Washington aprovou o envio de mais de mil milhões de dólares em armamento para Taiwan, uma habitual mas sensível afronta às reivindicações chinesas sobre o território. O governo de Trump emitiu também sanções sobre um banco e vários indivíduos chineses, que acusa de auxiliarem o regime norte-coreano, e no fim de semana enviou um navio para os territórios contestados no Mar Meridional da China, outra operação rotineira que contraria reclamações chinesas e exalta as tensões. Na base das manobras parece estar a convicção americana de que Pequim, afinal de contas, dispôs-se a pouco para controlar o regime norte-coreano. Respondendo, Xi Jinping queixou-se pelo telefone a Trump de “fatores negativos” na relação entre os dois.

O tema norte-coreano só piorou. O regime testou com sucesso esta semana um míssil intercontinental e parece ter agora a capacidade balística de atingir o território americano, mesmo estando pelo menos a dez anos de conseguir enviar uma bomba nuclear através do Pacífico – a previsão é discutível, mas do respeitado instituto “38 North”.

Os militares americanos não têm rodeios em dizer que esse momento significa guerra, que se tornará regional, envolvendo certamente a Coreia do Sul e o Japão e, provavelmente, a China. Se já seria devastador um confronto com o vasto, disciplinado e bem equipado exército norte-coreano – para além do mais, com mais de dez ogivas nucleares e milhares de toneladas de artilharia apontadas para Seul –, um conflito com Pequim ainda é mais. O governo chinês quer evitar a todo o custo a ocupação ocidentalizada de um dos seus vizinhos e a maré de refugiados que isso implicaria. Em parte, estas são as razões que travam a mão chinesa em Pyongyang: Xi Jinping quer travar Kim Jong-un, mas não ameaçar a vida do regime.

Pontos de conflito

A Coreia do Norte é apenas o mais visível ponto de possível confronto entre Estados Unidos e China. A ideia de uma guerra aberta entre a principal potência económica e militar no mundo e um país que a pode ultrapassar em breve ocupa uma importante parte da preocupação ocidental. E não por falta de motivos.

Os Estados Unidos opõem-se a Pequim numa série de temas espinhosos e cada um tem pelo menos algum risco de provocar uma escalada militar entre os dois países: desde a silenciosa defesa americana da autodeterminação no Tibete até à estridente defesa da independência taiwanesa; passando pelo desconforto das relações económicas que Pequim vai fortalecendo desde Manila a Islamabade e às operações militares em volta das ilhas artificiais e instalações militares construídas no Mar Meridional da China, uma das mais importantes rotas comerciais do mundo. Destes focos de tensão, o mais preocupante parece ser o de Taiwan, ilha armada pelos Estados Unidos, reclamada por Pequim e, segundo o think-tank Rand, um possível rastilho para confrontos até que se resolva o estatuto do território. Aqui, o “conflito pode assumir várias formas, desde um bloqueio até a uma verdadeira invasão”, argumenta, sublinhando, contudo, que o verdadeiro risco está num possível colapso do regime norte-coreano.

Em “Destinados à Guerra”, o norte-americano Graham Allison defende aquele que é o maior lugar-comum acerca de uma possível guerra entre os Estados Unidos e a China: o autor fala da “armadilha de Tucídides”, o homem que descreveu a guerra entre Esparta e a Grécia no séc. IV a.C., nascida do receio espartano de uma nova potência lhe roubar o lugar de líder mundial.

O argumento é plausível, mas, como critica Ian Buruma na “New Yorker”, parece ignorar a convicção de que a China, ao contrário dos EUA, não deseja o lugar do polícia e líder tentacular do mundo. Os Estados Unidos podem ter medo de ser ultrapassados, mas a China pode não querer fazê-lo. Buruma não está a sós nesta defesa. Acompanham-no o colunista e autor Gideon Rachman, que escreveu recentemente sobre inclinação oriental da balança do poder, e Howard French, por exemplo, antigo correspondente da “Time” na China, que este ano escreveu um livro sobre o tema. Acima de tudo, argumentam, Pequim quer recuperar a ordem asiática de há dois séculos e esquecer a invasão japonesa de 1895. O resto, nas palavras de Rachman, é “o grande desafio político do séc. XXI: gerir o processo de orientalização de acordo com os interesses comuns da humanidade.”