José Maria Vieira Mendes (ZMVM) escreve maioritariamente peças de teatro, mas também publicou ensaios e textos curtos de ficção. Faz traduções ocasionais e escreveu dois libretos para ópera. É membro do Teatro Praga desde 2008. As suas peças foram traduzidas em mais de uma dezena de línguas. Além de edições de peças nos Livrinhos de Teatro Artistas Unidos, publicou Teatro em 2008 (Livros Cotovia), “Arroios, Diário de um diário”, em 2015 (edição Dois Dias) e, em 2016, o ensaio “Uma coisa não é outra coisa” e uma compilação de peças “Uma coisa”, ambos pelos Livros Cotovia.
“O Despertar da Primavera” (representado em 1891) é um drama em cinco atos de Frank Wedekin (1864-1918), escritor alemão. Trata-se do deflagrar exasperado da sexualidade mum grupo de jovens adolescente. Esbarra com os valores de uma sociedade bem pensante e repressiva. Presente a temática do amor, do aborto, da homossexualidade… A tragédia e o riso, mistura de realismo e simbolismo. Peça interdita durante muitas décadas, tornar-se-ia num clássico, representado em vários Teatros Nacionais, anestesiada a aura de provocação e escândalo. A nova tradução integral de ZMVM para a Companhia de Teatro Praga reintroduz a estranheza e seduz.
O texto que fez ganha um corpo próprio, é uma espécie de idioma, tem uma autonomia em relação ao original. Qual é a receção de quem nunca viu nenhum espetáculo da Praga e não conhece o texto original?
Desde que trabalho com e enquanto Teatro Praga que a relação entre um texto de literatura dramática e um espetáculo se tornou problemática. Esse problema veio aliás dar no livro “Uma coisa não é outra coisa”. Há uma presunção genérica de que um texto de literatura dramática contém um espetáculo em potência e que portanto, nesse sentido, não é autónomo (como é por exemplo um romance ou um poema). O meu ponto, no entanto, é que, independentemente desta presunção, que decorre de processos históricos e culturais, ambas as ‘coisas’ (texto e espetáculo) são distintas, identidades próprias. E portanto, hoje, quando escrevo uma peça ou trato o texto do Wedekind não imagino necessariamente um espetáculo, dialogo antes de tudo com um leitor. Quando nos convidam para fazer um espetáculo a partir de um texto clássico, canónico, de Frank Wedekind, eu olho para isto não apenas da perspetiva de quem tem de fazer um espetáculo (e trabalho nisso com o André [E. Teodósio], a Cláudia [Jardim], o Pedro [Zegre Penim]), mas também da perspetiva do escritor: como é que do ponto de vista da literatura eu posso abordar esta proposta. Abstraindo-me da ideia de espetáculo e abstraindo-me depois do que vai acontecer a seguir. Criando uma espécie de projeto independente.
Como nasceu o projeto?
Quando comecei a traduzir, não tínhamos discutido quase nada, sabíamos só que tínhamos de ter uma tradução do texto do princípio ao fim, tínhamos de ter o texto. O que íamos fazer com aquilo não sabíamos muito bem. Por outro lado, tínhamos feito um espetáculo anterior que era o “Zululuzu” e eu comecei a traduzir isto ainda com o “Zululuzu” na cabeça. A primeira versão da tradução é pouco imaginativa e segue uma certa ideia normativa de tradução. E dou por mim a ler aquilo e a desinteressar-me do texto. O espetáculo “Zululuzu” utilizava uma certa retórica pedida de empréstimo ao discurso pós-estruturalista e a alguns dos seus descendentes, como os estudos de género, negritude e queer. Para o espetáculo “Despertar da Primavera” interessou-nos mais a perspetiva sexual e de género, até por culpa de uma interpretação relativamente consensual da peça que a empurra para a temática da sexualidade. Lembro-me que andámos às voltas com o termo “capitalismo Pink” e essas conversas e leituras entraram no texto.
Como é que integrou esses elementos no texto?
Um dos princípios mais abrangentes e exportáveis do ativismo queer ou feminista é a luta por uma desierarquização social, uma luta contra uma discriminação que classifica as identidades de acordo com um certo grau de humanidade – há pessoas mais humanas do que outras. O que tentei fazer com a língua portuguesa nesta tradução passa também por isso: há várias línguas portuguesas, as do passado, as do presente, as do norte, as do sul, as dos adolescentes, as das criança, as do bebé, as do idoso, as do rural, as do urbano… e podia continuar esta enumeração tipológica até ao infinito e acrescentar: e a minha e a tua e a ‘delxs’… Uma das coisas que se vem tornando cada vez mais visível, graças ao ativismo queer, é a presença de identidades de género e sexuais múltiplas, variadas, em mutação, fluidas, e interessou-me pensar como é que uma língua acompanha esse movimento, como é que pode dar conta, representar e dar visibilidade a corpos escondidos e identidades sub-representadas, não apenas no que diz respeito à sua orientação sexual, mas a todo um conjunto de vulnerabilidades sociais. Comecei então a inundar o texto com todas essas referências e a tentar diluir o padrão, a norma linguística. Foi este o sítio onde me começou a interessar trabalhar, e foi assim que cheguei à tradução.
E ao mesmo tempo é um projeto político.
É uma afirmação política, o texto. Mas isso…
A sintaxe correta é uma questão de poder.
Exatamente. Representação é poder, como escreve a Judith Butler. As palavras representam-nos. Se não temos palavra que nos represente, não existimos. Pense-se numa pessoa que se identifica como tendo um género não-binário (não é nem homem nem mulher). Esta pessoa não tem pronome na 3ª pessoa que a identifique. Por isso se criou o “elx” ou “elxs” que apenas serve por escrito. A língua exerce um determinado poder e tem a capacidade de excluir. No final do século XIX falava-se muito da crise da linguagem que não servia para dar conta da vida. Essa incapacidade tornou-se política. Hoje há uma grande consciência do que as palavras conseguem fazer. Há quem se queixe de um policiamento exagerado do falante (e há excessos, sim), mas acredito que esta consciência permite que vivamos uma realidade linguística bem mais inclusiva e atenta.
Não é só uma questão de liberdade, mas de libertação?
Mas isto sempre esteve na história da literatura. Aliás acho que é o Barthes que distingue a literatura do que não é literatura com esta capacidade de inventar língua. E há na história da literatura imensos casos de escritas não-conformes. O Joyce é assim o exemplo mais citado. Em Portugal temos o Nuno Bragança, por exemplo.
O Rui Nunes?
O Rui Nunes. E há mais…
E como é que isso se relaciona com o alemão do Wedekind? É uma tradução…
Há a tradução da Adélia da Silva Melo que é diferente da do João Barrento que é diferente da minha. Presume-se no trabalho do tradutor uma ideia de fidelidade que pode ser interpretada de imensas maneiras. Por isso é que as traduções variam consoante o tempo em que foram feitas. Mas a ideia de fidelidade também pressupõe que o original é uma coisa tangível e imóvel, isto quando estamos a falar de um texto escrito no final do século XIX e que entrava em diálogo com a língua que na altura se falava e cujo contexto é irrecuperável e intangível. Portanto, se eu disser “eu quero ser fiel”, tenho de me perguntar: “mas quero ser fiel a quê?” O texto não é uma coisa fixa, imutável, que eu posso capturar. É uma identidade escorregadia, complexa e em movimento comigo que estou a olhar para ela.
Muitas palavras são inventadas. A pessoa sai de lá e já nem consegue palestrar sem ser com elas.
Primeiro aconteceu com os atores, depois com as pessoas. Recebi emails de pessoas a escreverem contagiadas.
Uma libertação imensa na desconstrução.
Havia um lado lúdico. E isso é que foi a parte mais divertida.
O original tem um lado de humor, também tem humor, mas aqui tem um sentido jubilatório e sente-se que quem representa gosta do que faz.
Sim, sim. Para quem tinha de dizer o texto no espetáculo funcionou bem, por causa da estranheza inicial e da subsequente apropriação. Havia um estranhamento que os colocava num outro sítio, acho. Além disso tínhamos algumas pessoas no elenco que são muito atentas às questões da língua, para quem um pronome ou artigo tem uma carga simbólica e identitária muito forte. Essa hiperconsciência linguística anda, embora por outros caminhos, muito perto das preocupações da filosofia da linguagem e também das minhas preocupações na escrita.
Acha que este livro pode ser lido como um livro autónomo?
Talvez dentro da tradição de livros como “Uma Cerveja no Inferno” do Cesariny (tradução do Rimbaud)? Podes ler este livro de muitas maneiras, obviamente eu posso não conhecer o original para me divertir com este texto. A receção tem-no provado.
Como é que fez isto, como é que lhe vêm as palavras?
Algumas não sei. Bom… Há uma série de decisões que eu vou fazendo. Na primeira cena, por exemplo. Em vez de dizer mãe, escolho “mater”. E depois, consequentemente, “pater”. E replico isto muitas vezes. Mas depois não quero tornar isto sistemático, e portanto não é consistente. À vezes escrevo “mãe”. Não te sei dizer porquê “mater” e não outra coisa. Mas fui ao latim. Uma das preocupações que tive foi a de não criar um sistema. Se eu criasse um sistema jogaria o jogo da língua e da gramática normativas, mas se o sistema estivesse sempre a mudar conseguia uma imprevisibilidade permanente, uma sensação no leitor de estar sempre a tropeçar em novidades, não o deixando descansar durante muito tempo, apesar de, ao fim de algum tempo, ficar mais confortável, mais acomodado ao jogo.