Tal como se verifica em qualquer outro tipo de tráfico ilegal, identificar as principais rotas de entrada e saída de armas de um país, continente ou região, é uma tarefa intrincada. E no que toca a este género de contrabando, a realidade é ainda mais gritante. Isto porque não existe propriamente um modus operandi no comércio ilegal de armamento. Tanto pode ser feito pelos mesmo atores e através das mesmas rotas utilizadas para o tráfico sexual, de narcotráfico ou de migrantes, como pode desdobrar-se por caminhos independentes, de difícil rastreamento.
Um estudo de 2015 sobre o contrabando de armas de fogo a nível mundial, realizado pelo Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC), sugere que o facto de aquela atividade estar ligada, em muitos casos, a outros tipos de crimes, restringe bastante a propensão dos governos e das organizações internacionais em conceber enquadramentos legais de resposta, exclusivamente focados no combate ao tráfico de armas.
Refere o documento que no México o contrabando de armas de fogo e de munições é levado a cabo quase unicamente pelos cartéis de droga que operam no país e que na Suécia o entendimento das autoridades é o de que o mesmo é «uma atividade suplementar ao tráfico de narcóticos». Já em Espanha as ligações são abundantes com «o roubo, a violência e a intimidação» e na Roménia é comum a associação entre tráfico de armas e caça furtiva.
«O número elevado de delitos relacionados com tráfico de droga, contrabando, participação em crime organizado (…), homicídio e roubo, é frequentemente mencionado como estando ligado a apreensões de armas de fogo. É possível que o tráfico de armas não esteja a ser tratado de forma consistente enquanto crime (…) já que a execução da lei se foca em crimes mais sérios, como o tráfico de droga ou os atos de violência», defende o UNODC.
O caminho das armas de fogo
A grande maioria do armamento que circula de forma ilegal pelo globo é composto por armas de fogo e munições, pelo que os levantamentos estatísticos e a identificação de previsíveis rotas de tráfico por parte de entidades internacionais, como a Europol, a Interpol, o UNODC, a Frontex ou o Grupo Europeu de Peritos em Armas de Fogo da União Europeia (EFE), foca-se particularmente naquele tipo de armas. Informação sobre o tráfico de material explosivo, incendiário, químico, biológico, radiológico e nuclear, é por isso mais rara, e encontra-se, em muitos casos, trancada a sete chaves nas bases de dados dos serviços de inteligência dos vários países.
Segundo a UNODC, a delineação de possíveis rotas de tráfico de armas de fogo passa por juntar quatro informações essenciais sobre um determinado carregamento apreendido: o local onde foi intercetado; o país onde as armas foram feitas; o país de partida do carregamento; e o país de destino do mesmo. Os vários registos que as autoridades de diferentes Estados realizarem sobre as categorias acima identificadas criam condições para a realização de alguns esboços dos fluxos de tráfico existente.
O estudo daquela agência da ONU destacou, por exemplo, que 82% das armas de fogo apreendidas no Brasil, em 2013, tinham sido registadas como sendo de fabrico local, o que sugere que o comércio ilegal naquele país é sobretudo interno. Por outro lado, a Holanda revelou o apreendimento de 75% de armas de fogo oriundas de países como a Áustria, a Alemanha, a Bélgica ou Espanha, no mesmo ano. Tal realidade parece sugerir que o país das túlipas é sobretudo um destino de contrabando, mais do que um local de passagem ou de origem.
De acordo com um outra análise, da EFE, baseada nos dados divulgados por 19 Estados-membros da UE, grande parte do armamento de fogo que chega ao Espaço Schengen – não incluído, portanto, nas cerca de 80 milhões de armas legalmente registadas em toda a União – é oriundo da Turquia e dos Estados Unidos. Do outro lado do Atlântico chega sobretudo para o Reino Unido, Finlândia e Espanha – muitas vezes em trânsito no país vizinho, a caminho de África -, enquanto que do lado de lá do Bósforo os carregamentos espalham-se um pouco por todo o continente europeu: Bulgária, Espanha, Grécia, Finlândia, Holanda e Reino Unido.
Alemanha e República Checa são alguns dos Estados da União de onde se exporta mais armamento de fogo ilegal e a Finlândia é, a par da Holanda, da Bélgica e do Reino Unido, um dos principais destinos daquele tipo de armas, vindas de mais de seis países da Europa Central e de Leste. Estónia, Letónia e Lituânia são outros importantes pontos de chegada e partida de armas, que envolvem especialmente fluxos de interação com a Rússia. O estudo refere ainda que o principal país de onde se exportam armas para Portugal é a Holanda, sendo que para a vizinha Espanha é a Itália, juntamente com os já referidos EUA e Turquia.
O UNODC e a Comissão Europeia identificam também diversos países dos Balcãs – como o Montenegro, a Sérvia ou a Bósnia-Herzegovina – e da Europa de Leste – Eslováquia, Hungria, Bulgária, Roménia, Bielorrússia e Ucrânia – como locais importantes de passagem nas rotas de tráfico de armas de fogo, tanto para dentro da União Europeia, como para fora do espaço europeu, nomeadamente para a Turquia, Médio Oriente, norte de África e região do Sahel. Entre aquelas calcula-se que possam estar cerca de 500 mil armas, dadas como desaparecidas ou roubadas nos países que compõe a organização comunitária.
Práticas e atores
O estudo das Nações Unidas concluiu que o tráfico de armas a nível mundial é feito, sobretudo, por terra, mas também há registo de contrabando significativo por mar ou pelo ar. Pensar e pôr em prática a tarefa de fazer passar material ilícito por baixo das barbas das autoridades é um trabalho que exige, para além de um conhecimento aprofundado das leis dos diversos países e blocos regionais – tendo em vista o aproveitamento de eventuais lacunas entre diferentes entidades jurídicas -, uma grande dose de criatividade.
No leste europeu é prática comum traficar armas entre países recorrendo a compartimentos escondidos em veículos privados ou mesmo em autocarros públicos. Na região das Caraíbas usam-se frequentemente barcos de pesca para passar armamento de umas ilhas para as outras. No Gana, por exemplo, as artimanha são mais elaboradas. As autoridades daquele país africano revelaram à ONU que é costume encontrarem revólveres escondidos em veículos importados, camiões de refrigerantes e até em sacos de nozes e outros frutos secos.
Além disso, o contrabando bem-sucedido depende, na maioria dos casos, de uma ‘linha de montagem’ muito bem oleada, que seja capaz de se mover na sombra, de se adaptar a diferentes circunstâncias e a mudanças repentinas de planos. Daí o aproveitamento de algumas rotas do narcotráfico para o tráfico de armas. Nestes cenários operam alguns dos mais infalíveis grupos de crime organizado a nível mundial e regional. Se na América Latina é comum este trabalho ser levado a cabo por cartéis de droga, na Europa o comércio ilegal de armas é liderado por diversos gangues de rua.
A Europol aponta o crescimento do clube de motoqueiros Hells Angels no sul e leste da Europa como um das principais justificações para a dificuldade no controlo do tráfico ilegal de armas na região, uma vez que as alianças estabelecidas por alguns dos seus membros com outros gangues de motoqueiros, ilegalizados, da Bulgária, Macedónia, Albânia e Turquia tem contribuído para a dispersão das rotas nos Balcãs. Para além dos Hells Angels, há outros grupos que geram preocupação. «A cada vez maior dimensão internacional de alguns gangues de rua representa uma ameaça transfronteiriça. Grupos como os Latin Kings (Europa do Sul) ou os Black Cobra (Europa do Norte) revelam enorme capacidade de se envolver no crime organizado como gangues alto nível», destacava a Europol, num relatório recente, que aponta para a existência de cerca de 3600 grupos organizados a atuar no espaço europeu.
Uma outra fonte utilizada para o tráfico de armas é, naturalmente, a internet. Muitos dos referidos grupos vendem armamento a preços relativamente acessíveis, em mercados negros na chamada darkweb. A Europol revela que é relativamente comum encontrar uma Kalashnikov ou um lança-rockets à venda naquele tipo de plataformas online, por preços que podem ir dos 300 aos 700 euros.