A caminho da Livraria Ler Devagar, na LX Factory, onde Capicua, Emicida e Rael – Valete esteve presente em consciência – se encontraram para a entrevista ao i, antes de um dos derradeiros ensaios para o concerto de amanhã no Super Bock Super Rock, a Língua Franca ocupa o pódio no cartaz do segundo dia de festival. Só Future, o rapper de Atlanta e embaixador do (t)rap, tem direito a um corpo de letra maior. Estatuto de cabeça-de-cartaz oblige.
O álbum já está gravado desde outubro de 2015, quando os quatro mantiveram uma “residência artística” no estúdio Iá, do músico Fred Ferreira, em Lisboa. O parto foi demorado, mas agora a língua quer soltar todas as verdades que tem direito de expressar. Amanhã, às 22h45, não há Atlântico que os separe.
Juntaram-se por afinidades pessoais ou musicais?
Capicua (C) – As duas. Eu já tinha trabalhado com o Valete e o Emicida. Ele já tinha colaborado com o Rael. O Valete já tinha ido a um festival no Brasil organizado pela LAB, a editora do Emicida. E, depois, sermos da mesma tribo de rappers que fazem rap misturado com outras música e associado a rap consciente.
O disco tardou dois anos a sair…
Emicida (E) – Foi maior que a gravidez de um elefante.
C – Dois elefantes.
E – O elefante nasceu e o disco não foi para a rua.
Rael (R) – E só demorámos dez dias para escrever dez músicas…
Foi um método?
C – Tínhamos dez dias de estúdio e reservámos a agenda para isto. O objetivo era fazer um disco.
R – O Fred, o Nave e o Kassin já tinham produzido os instrumentais para escolhermos.
E – O método era: “Volta para lá e vai escrever. O disco ainda não está fechado.”
C – Houve uma residência artística prévia dos produtores. Nós encontrámo-nos em Lisboa. Discutimos temas, em que músicas é que cada um ia gravar…
R – Foi uma competição saudável.
E – Recriar o espírito battle do hip hop. A Capicua é competitiva.
C – Se não fosse, não era do rap. Ele [Emicida] é campeão invicto de freestyle. Ao Rael, dás-lhe um beat e ele faz três refrãos em dez minutos. Tive de acompanhar o ritmo.
E – Estou sempre a escrever. Já tenho ideias novas. Neste tipo de experiência é mais foda porque durante muitos anos criei sozinho e é bom sujeitarmo- -nos a um processo democrático.
C – Obrigou-me a ser produtiva fora da minha zona de conforto.
E – Corremos sempre atrás do consenso para ir buscar o melhor.
O Caetano Veloso elogiou-vos num vídeo em que chama a atenção para o facto de o português não estar explorado. O rap, enquanto música mais ouvida, pode desempenhar um papel importante?
E – No Brasil estamos a passar por um momento muito bacana em relação ao hip hop. Olhando para o que o Caetano disse no vídeo, o que o rap traz de positivo é: a nossa matéria-prima é a palavra e nós usamos um número grande de palavras. Para não nos tornarmos redundantes, é importante a imersão na língua. Quando fundimos duas formas de falar português, estabelecemos uma ponte para que os dois extremos mergulhem num caldo de informação. Há um campo cultural que deveria ser mais explorado. Principalmente no Brasil. O brasileiro entende que a forma de falar corretamente português é a do Brasil.
C – É normal, porque são 200 milhões a falar. A ideia da Língua Franca é a da língua comum, embora sejam muito diferentes – nós até dizemos que se fala “brasileiro”. Como diria o Carlos Tê, é muito mais aquilo que nos une do que o que nos separa. E depois a música, enquanto linguagem universal, também é uma língua franca.
R – Depois de passar alguns dias aqui, começo a perceber que o português de Portugal é como se fosse um ataque. Como há em regiões como o Nordeste ou no Sul. Em 15 dias, fico a falar assim.
E – A minha maldição aqui é não conseguir imitar o sotaque quando cá estou e ficar com ele quando me vou embora.
C – Este disco é de meio caminho. Não é “rap tuga” na escolha dos instrumentos, mas também não é “hip-hop brasileiro”, que é uma coisa enorme. Na música “Atenção”, que gravei com o Emicida, falo dos problemas do mundo e há muitas questões comuns entre o Brasil e a Europa. O avanço do conservadorismo, da extrema-direita, da falta de solidariedade entre os povos, o medo, a tensão, a insegurança e o terrorismo.
Passaram dois anos desde a gravação, mas as questões não se alteraram.
C – Até se acentuaram.
E – Fui fazer uma homenagem ao Gilberto Gil e ao Caetano Veloso e tocámos o “Haiti”. É triste ver que essa música continua atual. A “Atenção” tem a mesma atmosfera.
C – Até faz mais sentido hoje do que há dois anos.
E – Sim. Parece o Alan Moore no “V de Vingança”. Ele salta para o futuro para ver uma série de ações erradas no passado e acaba a reconhecer que o mundo está num caminho muito ruim. A ignorância virou consenso.
C – Nestes dois anos, os problemas não se alteraram, mas hoje muita gente perdeu a vergonha de espalhar o ódio. É tudo mais in your face. O que dantes era velado, agora é declarado. Isso acontece nos EUA com o Trump, na Europa com a extrema-direita, no Brasil com o Temer, movimentos como o Feminazi…os reacionários estão a sair debaixo das pedras.
Em 2014, o “Sereia Louca” tinha uma mensagem feminista assumida. A causa perdeu-se na estética?
C – Daí para cá, o feminismo deixou de ser vergonha. Passou a ser trendy e esvaziou-se politicamente. Isso tem coisas boas, mas depois há a reação descredibilizadora de contramovimentos.
Estão incluídos no dia do hip hop no SBSR. O que querem ver?
E – Pusha T. Pusha T é foda!
C – Eu quero ver o Slow J.
R – A Capicua é a porta-voz do Slow J no Brasil.